É um dos temais relevantes para a Teoria Geral do Direito a questão da personalidade jurídica, pois ao regular sua caracterização, obramos a premissa de todo e qualquer debate inserido no âmbito do direito privado.
É forçoso admitir que todo ser humano e destinatário final da norma, portando o estudo da personalidade jurídica é
primafacie tanto da pessoa natural como da pessoa jurídica.
Em psicologia entende-se por personalidade, a estrutura ou a silhueta psíquica individual, ou mais amiúde, “o modo peculiar de ser eu”.
No Dicionário eletrônico de Psicologia está consignada a seguinte significação sobre personalidade,
in verbis:
[De personal(i)- + -dade.]
S. f. Psicologia. Organização constituída por todas as características cognitivas, afetivas, volitivas e físicas de um indivíduo.
Personalidade de base: Sociologia. Configuração psicológica própria dos membros de uma determinada sociedade, e que se manifesta por um certo estilo de vida.
Personalidade psicopática: Psicol.1. Personalidade caracterizada por tendência constitucional ao desenvolvimento de uma psicose.
É certo que a personalidade para Teoria Geral do Direito não é um direito, é, de fato, o que apóia os direitos e deveres que dela irradiam, é objeto de direito, o primeiro bem da pessoa, para que a pessoa seja o que exatamente é.
San Tiago Dantas doutrinador arguto preleciona que personalidade jurídica é “uma ossatura destinada a ser revestida de direitos” Sem dúvida, a personalidade é parte integrante da pessoa permitindo que o titular venha adquirir, exercitar, modificar, substituir, extinguir ou defender interesses.
Francisco Amaral consagra a personalidade jurídica como valor jurídico que se reconhece nos indivíduos e em grupos legalmente constituídos materializando-se na capacidade jurídica.
A preleção de
Clóvis Beviláqua adiantava: “a personalidade jurídica tem por base a personalidade psíquica (...)” Mas obtempera que não se confundem o conceito jurídico e o conceito psicológico de personalidade.
É óbvio que se enxerga na personalidade jurídica a projeção de personalidade psíquica, ou outro campo onde esta se afirma, dilatando-se e adquirindo novas qualidades.
Há na personalidade jurídica intervenção de um elemento a ordem jurídica, do qual depende essencialmente, e do qual recebe a existência, forma, extensão e força ativa operante. A personalidade jurídica além de psíquica, é, pois uma criação social posta em movimento pelo aparelho jurídico, é portanto moldada pela ordem jurídica.
Para Teoria Geral do Direito traduz-s a personalidade por ser aptidão genérica para titularizar direitos e contrair obrigações, é atributo necessário para ser sujeito de direito.
Esclarece
Ulhoa que sujeito de direito é gênero e pessoa é espécie, isto é, nem todo sujeito de direito é pessoa, embora toda pessoa seja sujeito de direito. Sujeito de direito é o titular dos interesses em sua forma jurídica, é o centro de imputação de direitos e obrigações, se referindo as normas jurídicas com a finalidade de orientar a superação de conflitos de interesses que envolvem, direta ou indiretamente, homens e mulheres.
Os conflitos de interesses ainda que mediados por titulares não humanos, dão-se sempre entre humanos. A complexidade das relações econômicas e sociais, contudo, exige do direito a construção de conceitos abstratos, destinados a dar forma jurídica para a titularidade dos interesses. Nem todo sujeito de direito é pessoa e nem todas as pessoas, para o direito, são seres humanos.
Quando, por exemplo, o condomínio edilício é sujeito de direito, está tratando de modo racional a convergência de interesses dos homens e mulheres que moram num mesmo edifício. São sujeitos entre outros as pessoas naturais (homens e mulheres nascidos com vida), as pessoas jurídicas (sociedades empresárias, cooperativas, fundações etc.), o condomínio edilício, a massa falida e outros. Todos esses aptos a titularizar direitos e obrigações em variadas medidas e se cumpridas diferentes formalidades.
Os sujeitos de direito podem ser pessoas (personificados) ou não (despersonificados). A pessoa pode fazer tudo o que não está proibido. Já os sujeitos não personificados podem praticar somente os atos inerentes à sua finalidade (se possuírem uma) ou para os quais estejam especificamente autorizados.
A nova tábua axiológica preconizada pela Constituição Federal Brasileira vigente baseada na afirmação da cidadania e dignidade da pessoa humana, como valores supremos, dá um contorno mais amplo a personalidade que não se esgota na possibilidade de o titular ser sujeito de direitos, mas por igual, relaciona-se com o próprio ser humano.
Não é apenas um novo reduto de poder do indivíduo, nem apenas o valor máximo modelador da autonomia privada, sobretudo é capaz de submeter toda atividade econômica a novos critérios de validade.
A personalidade jurídica é também valor ético de origem constitucional especialmente relacionada com a dignidade da pessoa humana inserida num contexto social. O reconhecimento da personalidade jurídica imposta no reconhecimento dos direitos que tocam ao ser humano desde sua existência.
Conexo ao conceito de personalidade esclarecer o autor que escreve sempre com clareza solar,
Cristiano Chaves de Farias, porém, sem com este conceito se confunda , surge a idéia de capacidade.
Enquanto a personalidade é generalizante, reconhecida como valor jurídico atribuído a todos os seres humanos (e também aos grupos) exprimindo a idéia de aptidão genérica, a capacidade jurídica concerne à possibilidade daqueles que são dotados de personalidade a praticarem pessoalmente os atos da vida civil.
É possível se reconhecer a personalidade jurídica sem capacidade, é o caso do recém-nascido. No que tange à pessoa natural ou física, o Código Civil Brasileiro de 2002 substitui a expressão “homem” por “pessoa”, entrando na vertente da linguagem politicamente correta, e compatível coma nova ordem constitucional paritária (art. 1º., do C.C./2002).
Daí se infere que a personalidade é atributo de toda e qualquer pessoa (seja natural ou jurídica) vez que a norma substantiva não faz tal distinção. Consideram-se, assim, direitos da personalidade aqueles direitos subjetivos reconhecidos à pessoa, tomada em si mesma e em suas necessárias projeções sociais.
As pessoas são, a priori, capazes e podem, assim, praticar os atos e negócios por si mesmas. Como ensina
Caio Mário a capacidade é a regra e a incapacidade a exceção.
A incapacidade é situação excepcional prevista expressamente em lei com objetivo de proteger determinadas pessoas. Os incapazes são considerados, por lei, não inteiramente preparados para dispor e administrar seus bens e interesses sem a mediação de outra pessoa (representante ou assistente).
Com relação aos direitos fundamentais ou direitos da personalidade é pontual frisar que não há eficácia direta e imediata das normas constitucionais de direito privado, mas sim uma complementação do preceito geral por um mais específico.
Ex positis, os direitos fundamentais são diretrizes gerais, garantias de todo o povo – como sociedade em se ver livre do poder excessivo do Estado, enquanto os direitos da personalidade que são frutos da captação desses valores fundamentais regulados no interior da disciplina civilística.
Os direitos fundamentais desempenham as funções normais, como proibições e imperativos da tutela. O desprestigio da dignidade da pessoa humana somado a inúmeros atentados contra a personalidade por particulares em razão dos progressos técnicos da era moderna, os tribunais da Alemanha do pós-guerra passaram a agir em proteção da pessoa humana utilizando-se de artigos da Constituição Federal, numa forma de dever geral de personalidade.
Alguns direitos da personalidade tratados no relacionamento entre Estado e cidadão recebem o nome de liberdades públicas, sendo os direitos de personalidade do ponto de vista da tipificação, mas analisados em planos distintos; As liberdades públicas são acrescidas de outros direitos econômicos, sociais e políticos.
Assevera
Tepedino que as regras constitucionais condicionam o intérprete e o legislador ordinário, modelando o tecido normativo infraconstitucional com a tábua axiológica eleita pelo constituinte, dando uma releitura aos direitos da personalidade e afirmando a presença de uma autêntica cláusula geral de personalidade ( a dignidade da pessoa humana).
Os direitos de personalidade ultrapassam a clássica distinção dicotômica de público e privado. Assim, consagra
Cristiano Chaves de Farias que os direitos da personalidade são atinentes à tutela da pessoa humana, considerados essenciais à sua dignidade e integridade.
Caracterizam-se tais direitos pro serem absolutos, indisponíveis, relativamente imprescritíveis e extrapatrimoniais.
São absolutos posto que sua eficácia
erga omnes, oponível a todos impondo a coletividade o dever de respeitá-los. È um dever geral de abstenção dirigido a todos. Sua relativa disponibilidade impede que o titular possa deles dispor em caráter permanente ou total, preservando a sua própria estrutura física, psíquica e intelectual.
Assim, é que o art. 11 do C.C.de 2002 dispõe que com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis. No entanto, é permitido ao titular ceder o exercício e não a titularidade de alguns dos direitos da personalidade.
È o caso do direito de imagem que pode ser cedida à título oneroso ou gratuito durante certo lapso temporal. E nesse sentido o Enunciado 4 da Jornada de Direito Civil CFJ não aceita a limitação voluntária que seja permanente ou geral aos direitos da personalidade.
Admite-se, outrossim, a doação de órgãos humanos duplos, bem como a cessão dos direitos autorais o que bem denota a relativa indisponibilidade de tais direitos.
Cristiano Chaves de Farias relata evento curioso que se deu em França, num prosaico jogo de “arremesso de anões”, no qual as referidos seres humanos eram arremessados à distância por canhões de pressão.
A Casa Judicial francesa impôs uma vedação administrativa impondo proibição dessa diversão pública, contra tal ato, os anões em litisconsórcio com os promotores do jogo propugnaram requerendo a liberação do certame.
O que fez a Casa Judicial francesa reconhecer que o respeito à dignidade humana, é conceito absoluto e que não pode cercar-se de concessões e nem de apreciações subjetivas de cada um.
Por sua natureza intrínseca, a dignidade da pessoa humana está fora do comércio. Afora isto, garante o caráter de imprescritibilidade que a lesão ao direito da personalidade venha convalescer com decurso do tempo.
Curial é não confundir a imprescritibilidade da lesão do direito da personalidade, com prescritibilidade da pretensão indenizatória de eventual dano decorrente da violação do direito da personalidade e que ocorre normalmente em três anos (art. 206, § 3º, V C.C.).
É imprescritível o exercício do direito da personalidade, e sua respectiva pretensão garantidora desse exercício. Mas não é imprescindível a pretensão que busca indenização pecuniária por dano sofrido.
Outras duas características dos direitos da personalidade são assinaláveis, a saber: a essencialidade e a preeminência indicando expressamente a tutela preferencial em face da essencialidade de seu objeto.
Por derradeiro, classificamos também os direitos da personalidade como vitalícios extinguindo-se naturalmente com a morte de seu titular. Não obstante se reconhecer também os direitos de personalidade dos mortos conforme bem assinala o parágrafo único do art. 12 do C.C. de 2002, legitimando os chamados lesados indiretos a reclamar quer a tutela repressiva, quer a tutela inibitória.
Convém discernir os direitos da personalidade que são estudados na órbita do direito privado das chamadas liberdades públicas que são estudadas propriamente na órbita do direito público.
Enquanto que os direitos da personalidade são garantias mínimas da pessoa humana para suas atividades internas e respectivas projeções para a sociedade.
Por outro lado, as liberdades públicas são condutas individuais ou coletivas de forma autodeterminada mediante a autorização explícita ou implícita conferida pelo Estado, é a garantia mínima da cidadania.
Os direitos da personalidade são tendentes a assegurar a integral proteção da pessoa humana em múltiplos aspectos (corpo, alma e intelecto).
A classificação dos direitos da personalidade criteriza-se nos aspectos fundamentais da personalidade que são: a integridade física (direito à vida, ao corpo, à saúde, a inteireza corporal, direito ao cadáver); a integridade intelectual (direito à autoria, científica ou literária, a liberdade religiosa e de expressão), e demais manifestações do intelecto e, a integridade moral ou psíquica (direito à privacidade, ao nome, à imagem, etc.).
Considerando o alto estágio tecnológico da ciência, é mister afirmar um direito geral de personalidade, impedindo o exaurimento das espécies de direitos da personalidade que não podem ser esgotados e nem mesmo limitados. Frise-se que nenhum direito subjetivo sobrevive como completamente absoluto pelo imperativo da sociabilidade.
Trabucchi com sua notável sensibilidade reconhece um direito geral da personalidade reportando-se ao 2º, da Constituição Italiana
in verbis: ”A República reconhece e garante os direitos invioláveis do homem, seja como sujeitos singulares ou considerados na formação social onde desenvolve sua personalidade, e, por isso, requer a observância dos deveres inderrogáveis de solidariedade política, econômica e social.”
O mesmo fez o art. 1º, inciso III da Lei Maior brasileira, permitindo a cláusula geral protetiva e seu reconhecimento em qualquer situação concreta.
O direito à vida, como direito da personalidade nos remete a um direito à vida digna. O art. 1º, III da CF/1988 é uma autêntica cláusula geral de proteção da personalidade que é também encontrada no ordenamento português e italiano.
O Direito Civil Contemporâneo é marcado pela despatrimonialização do direito privado e a necessária repersonalização do ser humano merecendo uma tutela privilegiada, multifacetada e abrangente.
É sempre bom lembrar que a defesa da vida com dignidade é objetivo constitucionalmente assegurado pelo Poder Público.
A necessária vinculação da noção de direitos da personalidade com a noção dos direitos humanos acaba por derrubar o muro de Berlim que antes separava inexoravelmente o direito público do direito privado.
Em face da multiplicidade de situações que se expõe a pessoa humana no mundo pós-moderno somente o reconhecimento de uma cláusula geral de proteção de forte conteúdo principiológico, a ser preenchido no caso concreto pela jurisprudência auxiliada pela doutrina, é capaz de garantir, eficazmente a tutela da pessoa humana.
O direito à integridade física refere-se à proteção jurídica do corpo humano (incluindo o corpo vivo e o corpo morto), além de tecidos, órgãos e partes sucessíveis de separação e individualização.
Tal proteção tem início desde a concepção até a morte. Porém, convém lembrar as disposições legais sobre o cadáver previstas na Lei 9.434/97 que exige a manifestação de vontade para haver doação de ser órgãos para depois da morte. Não a havendo em vida, tal direito transmite-se para os herdeiros ( vide ainda art. 14 C.C./2002).
As partes do corpo (seja vivo ou morto) integram a personalidade humana, caracterizando coisa
extra commercium sendo vedado ato de disposição oneroso (art. 199, § 4º, CF, art. 1º, da Lei 9.434/97). Sendo admitida a disposição gratuita para fins terapêuticos e não causar prejuízo ao titular.
É perfeitamente possível perante o Direito de partes destacáveis do corpo humano renováveis (leite, medula, óssea, pele, óvulo, esperma, fígado) ou não, para salvar a vida ou preservar a saúde do interessado ou de terceiros, ou para fins científicos ou terapêutico, sempre a título gratuito conforme exige a lei.
É curial distinguir a doação em vida da doação post mortem. O art. 9º, da Lei 9.434/97 permite à pessoa maior e capaz dispor de pessoa de seu corpo, de forma gratuita para fins terapêuticos ou de transplantes e, se não importar em risco de vida ou a saúde do doador.
Somente as partes do corpo renováveis podem ser objeto de doação em vida. Deve tal doação preferencialmente ser feita por escrito.
No entanto, se o devedor for incapaz será necessária a autorização judicial com a prévia oitiva do MP de modo a preservar os interesses do incapaz.
Na doação em vida é possível a escolha do beneficiário, diferentemente da doação post mortem, onde o caráter altruístico é mais intenso e imposto pelo art. 2º, § único da Lei 9.434/97 e art. 24 § 1º, ao § 5º., do Dec. 2.268/97 que impõe fila de espera.
A morte que se refere à legislação atinente é encefálica que é detectada pela cessação definitiva da atividade cerebral. A nova dicção legal do art. 4º, da Lei 9.434/97 alterou a regra
ab initio promulgada que permitia a chamada doação presumida, assim a Lei 10.211/2001 passou a exigir a autorização expressa do cônjuge, companheiro ou parente próximo, se não houve doação em vida pelo titular.
Ulhoa esclarece que se em vida o titular expressa vontade de não ser doador em hipótese nenhuma, não poderá seus familiares autorizá-la. A lei reconheceu a plena eficácia do ato apesar do sumário egoísmo.
Em que pese outras ponderações são distintos os conceitos referentes a transplante que consiste na amputação ou ablação de órgão, com função própria, de organismo para ser instalado em outro, no qual cumprirá as mesmas funções. Temos como exemplos: os transplantes de córneas, de rim, de coração e, etc...
Enxerto, por sua vez, é a retirada de porção orgânica para ser instalada no mesmo organismo é exemplo clássico as “pontes de safena”. Implante se caracteriza pela integração de tecidos mortos ou conservados no corpo de alguém. A norma que disciplina a matéria, no entanto, não diferencia um procedimento de outro.
Importantíssimo lembrar que é indispensável para a retirada de órgãos humanos post mortem, que o falecido venha devidamente identificado pelos documentos listados pelos
§ 1º, ao 6º, do art. 14 do Dec. 2268/97 e, ainda, arts. 5º, e 6º, da Lei 9.434/97.
A realização de cirurgias em transexuais que pretende redefinição do estado sexual é reputada proibida conforme uma primeira leitura do art. 13 do Código Civil, embora represente tal dispositivo legal uma afronta a garantia da dignidade da pessoa humana. Pois o transexual possui direito da personalidade que é o direito à integridade física e psíquica.
O paciente transexual encontrará o equilíbrio emocional, e se livrará das tormentosas angústias quando finalmente redefinir o seu sexo. Recentemente, em 2002, o conselho Federal de Medicina (CFM) editou a Resolução 1.652 que autoriza as cirurgias de mudanças de sexo também chamadas de transgenitalização, em casos de transexualismo comprovado. Exigindo-se que o paciente tenha mais de 21(vinte e um) anos e deve ter diagnóstico comprovado clinicamente de seu transgenitalismo e, ainda não possuir o paciente características físicas inapropriadas para a cirurgia.
Além disso, deverá a cirurgia ser antecedida necessariamente de laudo de equipe médica composta de psiquiatra, cirurgião, endocrinologista e psicólogo e, ainda, assistente social que avaliará o paciente transexual pelo menos por dois anos contínuos.
A cirurgia do feminino para o masculino só poderá ocorrer em hospitais universitários ou públicos. Já a cirurgia do masculino para o feminino, no entanto, só poderá ocorrer em hospitais públicos ou privados, independente de atividade de pesquisa (arts. 5º, e 6º, da Resolução CFM 1652/2002) e, ambas as hipóteses cirúrgicas independem de autorização judicial.
Ultimada a cirurgia, tem-se obviamente que se adequar o estado sexual registral e o nome do paciente que se fará por meio de jurisdição voluntária perante o juízo de família (ação de estado) acobertada pelo segredo de justiça.
Há Projeto de Lei 70-B de autoria do deputado
José Coimbra que pretende disciplinar a licitude da cirurgia de mudança de sexo, além de prever também a possibilidade de averbação do novo sexo, vedando a emissão de certidão com referências ao estado anterior ou mesmo a origem cirúrgica (sigilo de registro).
Só há no horizonte um delicado
busilis se o transexual operado eventualmente tiver filhos (e, como ficarão seus respectivos registros civis). Por tal razão, as legislações alemãs e suecas vedam a redesignação sexual quando o operado é casado ou tem filhos.
Outro caso interessante é o referente aos adeptos e seguidores da Igreja Testemunhas de Jeová que, por sua crença, (lembremos cuja liberdade é assegurada constitucionalmente) não admitem o recebimento de transfusões de sangue, há de se reconhecer a possibilidade da recusa à terapia hematológica.
Configura-se,
in casu, verdadeiro conflito de valores clamando pela aplicação do princípio da ponderação de valores para se encontrar melhor solução.
Também quanto ao tema o CFM editou a Resolução 1.021/1980 e, ainda, há a previsão dos arts. 45 e 56 do Código de Ética Médica autorizando os médicos a praticar a transfusão de sangue em seus pacientes, independentemente de consentimento, se houver iminente perigo de vida.
Nesse sentido, se posiciona a maioria esmagadora da jurisprudência pátria, principalmente se comprovado o efetivo perigo de vida do paciente. Sacrificar a liberdade de religião em detrimento da intangibilidade do direito à vida e ao corpo é desconsiderar um aspecto essencial e também indisponível da personalidade, seria reduzir a vida a uma dimensão física da pessoa.
Interessante e intrigante é a questão de “barriga de aluguel” que se dá quando a gestação se desenvolve em útero alheio. É procedimento que viabiliza a maternidade a certas pessoas com restrições sérias biológicas.
Sob contundentes objeções da Igreja Católica (instrução
Donun vitae de 22.02.1987 aprovada pelo Papa João Paulo II) , o CFM editou a Resolução 1.358/92 autorizando o médico realizar a gestação em útero alheio respeitados certos requisitos:
a) realizar-se entre parentes até 2º grau; b) a cessão do útero será forçosamente gratuita; c) que tenha finalidade médica aplicada em face de pessoas que não podem gestar e, não por razões meramente estéticas ou egoísticas ( como a vaidade feminina).
Deve-se evitar o “comércio de órgãos humanos” atendidos os requisitos da resolução do CFM há de se conferir juridicidade à maternidade de substituição. É de relevância também a questão do registro civil com base na declaração fornecida pelo médico que inscreverá a declaração do nascido vivo (art. 46 da Lei 6.015/1973), o nome da mãe biológica ou social.
Problemático será, no entanto, se o médico parteiro não souber da gestação em útero alheio, somente prover a referida declaração em favor da mãe parturiente (ou seja, a mãe hospedeira). E, nesse caso, os interessados, a mãe biológica ou genética, o pai, o MP suscitarão o procedimento de dúvida (art. 296 c/c art. 198 a 204 da Lei 6.015/1973).
Deve a referida gestação em útero alheio ser fruto de consentimento informado e expresso, o que possibilitará a alteração pertinente do registro de nascimento junto à Vara de Registros Públicos.
A reprodução assistida pode ocorrer por inseminação artificial (em laboratório) ou no corpo da mulher. Ambas as modalidades podem se concretizar na forma homologa ou heteróloga.
Será homóloga se utilizado material genético do próprio cônjuge ou companheiro, com sua expressa anuência. Será heteróloga, se o sêmen é de terceiro, sempre a título gratuito (Resolução 1.358/1992 do CFM).
A autorização prévia e expressa do cônjuge funciona como adoção prévia suficiente para gerar a presunção de paternidade do art. 1.597 do C.C. de 2002. Devido ao princípio do anonimato ou do sigilo do doador de sêmen (Resolução CFM 1.358/2002) que o motivo da vedação ao uso da reprodução assistida heteróloga em mulheres não casadas ou em união estável foi evitar o movimento de filhos sem pai.
No entanto, novamente verificamos uma afronta ao direito da personalidade de se ter liberdade psíquica e de planejamento familiar, e, ainda por importar em discriminação injustificada em face de mulheres solteiras ou conviventes em união estável.
Portanto, a reprodução assistia heteróloga não servirá o que na gíria chamamos de “produção independente”, o que certamente excluiria os homossexuais.
O Projeto de Lei 90 acende polêmica pois contempla o direito da criança conhecer o doador do sêmen, só quando atingir a maioridade civil, ou quando da morte dos pais ou na hipóteses do pai contratante não promover o registro civil de nascimento. Também pretende obrigar a transferência de todo material genético preparado laboratorialmente para o corpo da mulher, impedindo os chamados embriões excedentários.
Uma pergunta sucinta
Ulhoa, o embrião fecundado
in vitro e não implantado no útero é sujeito ou objeto de direito? Não há ainda uma resposta consensual, na tecnologia jurídica, para essa complexa questão.
Enquanto o embrião não é implantado num ambiente orgânico propício ao seu desenvolvimento como ser biologicamente independente, ele não pode ser considerado como tal. A decorrência lógica desse enfoque é a que embrião in vitro não é sujeito de direito, mas bem da propriedade comum dos fornecedores do espermatozóide e óvulo (alguns os chamam de “pais”, mas esta não parece ser a melhor designação; vou chamá-los de “genitores”).
...
(Continua)