Revista Época, Norma Couri, em 15/07/2010
Por que as famílias de escritores se ocupam em dificultar o legado de obras como as de Oswald e Graciliano
Famílias, eu vos detesto. A antologia que acaba de sair na França com esse título é uma coleção de casos vividos por Emmanuel Pierrat, especialista em propriedade intelectual. O que pode ser pior para um fã de Jorge Luis Borges do que não encontrar suas obras pela coleção Pléiade porque a reedição foi bloqueada pela viúva do autor, Maria Kodama? E a frustração dos leitores de Jean Giono que não poderão ler as 3 mil páginas de sua correspondência com a amante Blanche Meyer, proibida pelos sucessores? (…)
Agora que Pagu revive com uma fotobiografia e exposição na Casa das Rosas, em São Paulo, um lado da família cuida de não respingar na mítica avó nenhum petardo da batalha travada pelos herdeiros do ex-marido de Patrícia Galvão, Oswald de Andrade. Filho dos dois, Rudá de Andrade morreu em janeiro de 2008 como inventariante, mas Marília, filha de Oswald com sua última mulher, Antonieta, disse a ÉPOCA que agora ocupa essa função. Marília exige 75% dos direitos autorais e de publicação, porque assume os 50% da mãe, que se suicidou, e os 25% do único irmão, Paulo Marcos, morto num desastre. Dos muitos casamentos de Oswald nasceram quatro filhos: os dois de Antonieta, o primogênito, Nonê, casado com Adelaide, ainda viva, e Rudá, casado algumas vezes, com três herdeiros. A obra do genial Oswald passa por esse intrincado labirinto familiar, já que a viúva de Rudá, Halina Kocubej, e seu filho Rudazinho foram surpreendidos com um testamento de Oswald encontrado por Marília legando 50% dos direitos a sua mãe. (…)
A pesquisadora Maria Eugênia Boaventura, autora da bela biografia de Oswald, O salão e a selva, lastima a remexida num inventário que não fechou. “Desde a morte de Oswald se sucedem gerações de filhos de várias mulheres que não se entendem e pouco conviveram com ele – em 1954, Marília tinha 8 anos”, diz. “Só se reedita o que constava no contrato. A biografia do Oswald seria inviável hoje.”
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Famílias, eu vos detesto. A antologia que acaba de sair na França com esse título é uma coleção de casos vividos por Emmanuel Pierrat, especialista em propriedade intelectual. O que pode ser pior para um fã de Jorge Luis Borges do que não encontrar suas obras pela coleção Pléiade porque a reedição foi bloqueada pela viúva do autor, Maria Kodama? E a frustração dos leitores de Jean Giono que não poderão ler as 3 mil páginas de sua correspondência com a amante Blanche Meyer, proibida pelos sucessores?
Freud já estudava as lutas familiares depois da morte do pai e o impulso de retomar o lugar vago. Não acontece apenas no terreno psíquico nem só na França. O bibliófilo José Mindlin dizia que familiares de escritores deviam ostentar no cartão de visita a profissão “herdeiro”. Não é justo colocar no papel do carrasco apenas as famílias. O próprio Pierrat reconhece que editoras são especialistas em ultrapassar limites. Na guerra travada por trás das estantes, o leitor nem desconfia por que esse ou aquele autor evaporou-se de repente.
Agora que Pagu revive com uma fotobiografia e exposição na Casa das Rosas, em São Paulo, um lado da família cuida de não respingar na mítica avó nenhum petardo da batalha travada pelos herdeiros do ex-marido de Patrícia Galvão, Oswald de Andrade. Filho dos dois, Rudá de Andrade morreu em janeiro de 2008 como inventariante, mas Marília, filha de Oswald com sua última mulher, Antonieta, disse a ÉPOCA que agora ocupa essa função. Marília exige 75% dos direitos autorais e de publicação, porque assume os 50% da mãe, que se suicidou, e os 25% do único irmão, Paulo Marcos, morto num desastre. Dos muitos casamentos de Oswald nasceram quatro filhos: os dois de Antonieta, o primogênito, Nonê, casado com Adelaide, ainda viva, e Rudá, casado algumas vezes, com três herdeiros. A obra do genial Oswald passa por esse intrincado labirinto familiar, já que a viúva de Rudá, Halina Kocubej, e seu filho Rudazinho foram surpreendidos com um testamento de Oswald encontrado por Marília legando 50% dos direitos a sua mãe.
“Minha tia derrubou um triunvirato de 40 anos – meu pai, Adelaide e ela dividiam tudo”, diz Rudazinho. “Meu pai reviveu Oswald na Editora Globo na década de 1990. Mas agora meus irmãos Gilda e Cláudio, de seu primeiro casamento, estão ao lado da minha tia, contra mim e minha mãe. Não nos falamos, os contratos ficam truncados, implicam até com o inventário da Pagu. As obras vão sumir, a gente não pode deixar que aconteça com Oswald o que aconteceu com Graciliano e Lobato.”
A pesquisadora Maria Eugênia Boaventura, autora da bela biografia de Oswald, O salão e a selva, lastima a remexida num inventário que não fechou. “Desde a morte de Oswald se sucedem gerações de filhos de várias mulheres que não se entendem e pouco conviveram com ele – em 1954, Marília tinha 8 anos”, diz. “Só se reedita o que constava no contrato. A biografia do Oswald seria inviável hoje.”
Graciliano morreu um ano antes de Oswald. A família em pé de guerra levou mais de 50 anos para fechar o inventário. Os filhos da herdeira Heloísa, Clara e Ricardo, brigavam entre si e não se entendiam com a mãe e a irmã mais velha, Luiza, casada com James, irmão de Jorge Amado. Clara e Ricardo morreram em 1992 sem se falar. A inventariante passou a ser a filha de Clara, a psiquiatra Luciana Ramos, hoje com 54 anos.
“A família se desagregou quando eu tinha 10 anos. Quando fiz 18, minha mãe rompeu com a mãe dela, minha avó Heloísa, viúva de Graciliano. Uns ficaram de um lado, outros partiram para a briga, e eu lutei para criar um instituto em que todo mundo opinasse, mas não deu certo”, diz Luciana Ramos. “Vovô tinha filhos do primeiro casamento que eram desprezados pela vovó, a segunda mulher. Quando tomei pé da situação, discordei dos pagamentos da Record. Foi muita disputa, até tia Luiza fazer uma sociedade. Fui a única que não entrou, a editora tem de me pedir permissão para tudo. Havia interesse de estrangeiros em filmar a obra do vovô e um projeto de memorial pelo Niemeyer. A confusão familiar impediu contratos importantes. A briga é para ser a encarnação do vovô na Terra.”

A filha de Oswald de Andrade exige 75% dos direitos autorais das obras do pai. A descoberta de um testamento gerou uma disputa entre os herdeiros

Única filha de Graciliano Ramos, gere uma empresa com 14 membros criada para administrar os direitos da obra do pai
O ponto final das disputas foi a empresa HG (Herdeiros de Graciliano), com 14 membros, gerida de Salvador por Luiza Amado, de 78 anos, única filha viva, e Ricardo, filho do irmão que morreu. Ela sempre contestou a acusação da irmã Clara de que Ricardo teria publicado o original errado de Memórias do cárcere, já que Graciliano revisava seus textos à mão na mesa cativa da Livraria José Olympio. Clara publicou um livro, Cadeia, contestando a edição póstuma, e desuniu mais a família. Bastava ler o próprio Graciliano para aceitar os múltiplos originais encontrados depois de sua morte. Numa entrevista concedida em 1948 ele explicava: “Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”.
Luiza diz que a origem da acusação de Clara era um suposto recado do Partido Comunista para Graciliano alterar o livro: “Se o PCB pediu, garanto que papai nunca obedeceu. Usamos o último original revisado. Os livros já saem pela Record há mais de 30 anos, e refiz o contrato por mais dez, porque assim posso controlar as edições e cuidar de que não falte livro nas prateleiras”.
Em 2023, os livros de Graciliano cairão em domínio público. A lei determina que a família detenha os direitos por 70 anos depois da morte. Até lá, a editora é a Record. “A Record tem casos de sucesso em herança literária”, e a fórmula, segundo o editor Sérgio Machado, é: “Não entramos no mérito das disputas familiares”. Ele afirma que um bom herdeiro deveria fazer tudo para não desvalorizar o patrimônio, como um prédio mal administrado que só traz prejuízo: “Herdeiro tem complexo de culpa original por receber um dinheiro que não foi ganho por ele. Até o neto da Agatha Christie me disse que pretendia posicionar a avó melhor no mercado com um logotipo feito por ele... Claro que uns herdeiros são gerenciáveis e outros vão ao limite da inviabilidade”.
Machado afirma que o editor é um psicólogo de plantão. “Até para avisar que o troca-troca de editora desgasta o autor”, diz. Uma vez Paulo Coelho avisou que trocou de editora porque recebeu “um sinal”, simbolizando o além, e Machado, se fazendo de desentendido, perguntou: “Um sinal de quanto?”. Mas há situações em que a troca é necessária, quando um editor adota uma política suicida e mata o autor junto. “É o caso do Monteiro Lobato, que perdeu duas gerações de leitores”, diz.
Se o pesquisador Vladimir Sachetta não tivesse publicado em 1997 a excelente biografia Furacão na Botocúndia, seriam mais de quatro gerações sem conhecer Lobato. O contrato foi fechado pelo próprio Lobato com a editora Brasiliense três anos antes de sua morte, em 1948, quando a obra completa foi publicada. Depois, nunca mais. A disputa entre a editora e a única neta viva, Joyce, junto com o marido, Jorge Kornbluh, sacrificou Lobato com arrestos de edições inteiras publicadas sem o consentimento de herdeiros e discordâncias sobre que ortografia adotar: a dos anos 40 ou a nova ortografia? Em 2007, mais de 60 anos depois, a família conseguiu levar a obra para a Editora Globo (a mesma que edita ÉPOCA). Da confusão, Danda Prado, editora da Brasiliense, limita-se a dizer: “Herdeiros são muito complicados”. O editor da Globo hoje, Mauro Palermo, lastima que durante dez anos Lobato tenha sumido do mapa, “até de edições do tipo que reunia os 100 melhores”.

Neto de Aracy, segunda mulher de Guimarães Rosa, chama o escritor de “vovô Joãozinho”. Rosa legou a Aracy os direitos de Grande sertão: veredas
“Depois que passou para a Globo, Lobato foi reoxigenado”, diz Sachetta, o maior conhecedor das obras. “No ano seguinte, Il presidente Nero saiu na Itália pela Controlucce, e a Argentina acaba de lançar Las travessuras de Naricita, com prefácio de Cristina Kirchner, que agradece a ‘Naricita y Perucho, a Emilia y el Visconde, a Anastásia y doña Benita’ por alimentar seus sonhos e utopias.” Prova de que valeu a pena a aposta da então editora de livros infantis da Globo, Lúcia Machado. Ela trabalhou para lançar de uma vez cinco títulos na Bienal. “Foi risco calculado porque o contrato ainda vingava na Brasiliense”, diz Lúcia. “Quadrinizamos alguma coisa, arrumamos outras, em menos de dois anos tínhamos vendido 2 milhões de livros.”Ainda faltavam 14 anos para a obra de Monteiro Lobato cair em domínio público, e essa era a preocupação dos herdeiros. “Tínhamos de deixar a obra arrumada”, diz Kornbluh.
“Não chegaremos a saber nada da nossa própria morte”, dizia José Saramago. Quando Guimarães Rosa morreu, em 1967, não imaginava que sua obra seria gerida por alguém que não tem seu sangue, embora carregue um bom quinhão da mulher que ele mais amou. Eduardo Tess Filho é neto de Aracy Guimarães Rosa, segunda mulher com quem se casou enquanto era embaixador em Hamburgo. Foi para “Ara” que ele deixou os direitos de sua obra mais conhecida, Grande sertão: veredas. Os direitos de livros como Sagarana e Corpo de baile são divididos entre Aracy, hoje com 102 anos, e as filhas do primeiro casamento, Vilma e Agnès. “A operação não foi simples,” diz o advogado Tess, que chama Rosa de “vovô Joãozinho”. “O inventário durou 15 anos com idas e vindas. Para fechar, vovó abriu mão de uma parte e formamos um condomínio para a obra não sofrer descontinuidade.”
Vilma Guimarães Rosa torce o nariz. “O ‘neto’ cria problemas, eu não surrupiei os diários de guerra do meu pai... Ele diz que pedi emprestado à avó dele e nunca devolvi. Mentira, papai me deu no meu aniversário, e um dia pretendo publicar as 208 páginas...” A disputa mantém os originais arquivados. Vilma insiste: “Não somos nós, eu e minha irmã, Agnès, as donas do nome e da imagem de Guimarães Rosa?”. Na antologia dos 100 melhores da Objetiva, Rosa também ficou de fora. O “condomínio” ou parte dele teria exigido R$ 20 mil pela publicação de um conto, o total que os outros 99 autores receberiam da editora. Quem perde é o leitor.
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MinC quer licença à revelia de herdeiro
20/07/2010
Folha de S. Paulo – SP
Texto da reforma da lei de direito autoral tem proposta concebida para evitar obstáculos criados por parentes
Inconstitucional para alguns, item prevê que presidente autorize “quebra de patente autoral” na cultura
O anteprojeto de reforma da lei de direito autoral elaborado pelo MinC (Ministério da Cultura), que está em consulta pública, abriga um controverso capítulo concebido com a intenção de evitar que disputas e abusos de herdeiros impeçam a difusão de obras relevantes para a cultura do país.
Pela proposta, interessados na exploração de uma obra podem requerer ao governo em casos excepcionais uma “licença não voluntária” -ou seja, à revelia do titular do direito autoral.
A solicitação, restrita aos que comprovarem ter capacidade técnica e econômica de explorar a obra, seria encaminhada ao presidente da República, que decidiria pela concessão da licença após análise de parecer do MinC.
Os herdeiros continuariam sendo remunerados pelos direitos autorais, mas o valor seria fixado pelo MinC com base em valores de mercado.
SOB MEDIDA
Segundo o diretor de Direitos Intelectuais do MinC, Marcos Souza, a sugestão foi incluída no texto após seguidas queixas do mercado editorial e de artes plásticas, surgidas durante o debate da reforma da lei, de que herdeiros impõem obstáculos “não razoáveis” à divulgação da obras de autores já mortos.
Nas duas áreas, são conhecidos casos de conflitos com herdeiros (entre si ou com o mercado) que impedem ou retardam o acesso público à obra dos ascendentes.
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