Professor Cândido Dinamarco
A PROVA CIVIL: VISÃO SISTEMÁTICA
۩. Conceito e relevância
Prova é demonstração e provar é demonstrar. Como o juiz julgará a causa de um modo se certos fatos tiverem ocorrido e de modo oposto se não ocorreram, para julgar e preciso saber se ocorreram ou não. Por isso e dada a institucionalizada ignorância do juiz quanto aos fatos relevantes para o julgamento, é indispensável dotar o processo de meios capazes de tirar seu espírito do estado de obscuridade e iluminá-lo com a representação da realidade sobre a qual julgará.
Essa representação é o conhecimento da realidade fática e esses meios, em conjunto, compõem a instrução probatória. O resultado a ser obtido mediante a instrução probatória é o conhecimento dos fatos e conseqüente firmeza para proferir a decisão.
Na dinâmica do processo e dos procedimentos, prova é um conjunto de atividades de verificação e demonstração, mediante as quais se procura chegar à verdade quanto aos fatos relevantes para o julgamento.
Tal conceito é o que mais interesse oferece na teoria do processo. Mas o vocábulo prova designa também o próprio resultado das atividades consistentes em provar. Dizer que há prova de determinado fato ou que ele está provado, significa que se realizaram provas suficientes para convencer de que ele ocorreu. Não é esse o significado que interessa ao estudo da prova no quadro da instrução inerente ao processo.
Na dinâmica processual as atividades de verificação consistentes na prova terão em cada caso a importância que para o julgamento tiverem as questões de fato. É absolutamente impossível um processo em que se dispense por completo qualquer elemento fático.
Já ao instrumentar a demanda mediante a elaboração da petição inicial, tem o autor o ônus de narrar os fatos nos quais sustenta ter origem seu alegado direito (CPC, art. 282, inc. III). Ao decidir, o juiz leva em conta os fatos alegados, pertinentes e comprovados ou dispensados de prova.
A indispensável presença dos fatos nas demandas e nas sentenças (e ordinariamente também nas defesas) constitui projeção processual da tradicional máxima ex facto oritur jus: como todo direito origina-se de um fato, não há como aflorar a existência de um direito sem a simultânea afirmação ou reconhecimento de que, naquele caso, ocorreram os fatos a que a lei substancial associa como conseqüência a formação do direito.
Não só a formação do direito em casos concretos é obra dos fatos juridicamente relevantes segundo a lei. Também a sua extinção e modificação - e daí falar-se em fatos constitutivos, extintivos ou modificativos. Os fatos impeditivos, com a eficácia de não permitir a formação do direito, também se inserem no quadro dos fatos juridicamente relevantes, embora não estejam presentes em todo processo.
Mas nem sempre a prova é necessária sob pena de o fato ser havido por inexistente. Em princípio, a prova só é necessária em caso de controvérsia sobre sua ocorrência ou inocorrência, não sendo dependentes de prova as alegações feitas por uma parte e não impugnadas por outra (inclusive quando o réu é revel ou quando confessa): excetuadas as ressalvas postas pela própria lei, o fato incontroverso ou confessado é aceito pelo juiz como existente (arts. 302, 319 e 334, incs. II-III). Também são aceitos sem provar, ainda que controvertidos entre as partes, os fatos de conhecimento geral, chamados notórios (art. 334, inc.I).
Comportam prova contrária os fatos em cujo favor milite presunção legal relativa de existência (art. 334, inc. IV), o que significa que a alegação de sua ocorrência não dependerá de comprovação, mas a negativa sim (provado que paguei a última das parcelas da dívida, não preciso provar o pagamento das outras, mas o credor terá oportunidade de provar que não as paguei: CC, art. 943).
۩. Localização sistemática do instituto da prova - prova e forma dos atos jurídicos
Destinando-se a preparar julgamentos e endereçando-se ao espírito daquele que julgará, é no processo que a prova exerce sua função. Em si mesma e na sua função perante a ordem jurídica e a vida dos direitos ela é, pois, um instituto de direito processual e não de direito material, ainda quando a disciplina de certos elementos exteriores pertença em parte a este ou seja influenciada por normas jurídico-substanciais (fontes e ônus da prova, institutos bifrontes).
Diferentes da prova, seja em sua natureza, seja em sua relevância jurídica, são as formas solenes de que certos negócios jurídicos devem-se revestir necessariamente, sob pena de invalidade ou inexistência jurídica (tal é a forma prescrita ou não defesa em lei, na clássica fórmula exposta pelo art. 82 do Código Civil). Essas, sim, são típicos institutos de direito substancial, uma vez que sem elas o ato não vale ou até mesmo pode chegar a ser juridicamente inexistente. Quando se trata de convencer e não de constituir validamente o ato (prova ad substantiam, art. 134 CC), estamos no campo preparatório de julgamentos e por isso é de processo que se cuida. Diz a propósito o Código de Processo Civil: "quando a lei exigir como substância do ato o instrumento público, nenhuma outra prova, por mais especial que seja, pode suprir-lhe a falta" (art. 366).
A questão da sede sistemática da prova costuma ser mal formulada, quando se insiste em incluí-Ia no direito privado. Por que direito privado (civil, comercial) e não direito administrativo, tributário, trabalhista etc.? Se não se situasse no direito processual, a prova estaria no direito substancial e não especificamente no privado (José Frederico Marques). São esses os dois planos em que se divide a ordem jurídica e chega a ser arbitrária a afirmação do direito privado como sede sistemática da prova.
Essas afirmações de caráter metodológico não são comprometidas pela estrutura bifronte das fontes e do ônus da prova, cuja regência vem do direito material mas cujo tratamento e utilidade se verificam no processo. Por sua significativa proximidade às relações jurídico-substanciais a que se referem e influência imediata sobre a possibilidade de tutela jurisdicional, as fontes de prova e o opus probandi são categorias jurídicas bifrontes, integrando pois o conteúdo do direito processual substancial.
São exclusivamente processuais outras categorias e conceitos integrantes do direito probatório, como o objeto da prova, os meios de prova e os critérios para valorá-la.
A natureza processual da prova é intimamente associada à identificação do juiz como seu destinatário. A produção da prova não é prerrogativa inerente à estrutura dos direitos, mas ao exercício da jurisdição, da ação e da defesa. A idéia do processo como combate, ou jogo (Calamandrei), é apenas uma bela imagem e não deve distorcer a visão de que todos os atos das partes no processo são invariavelmente dirigidos ao juiz: só indiretamente o adversário lhes sentirá os efeitos, a saber, quando o juiz decide.
۩. Direito à prova
Direito à prova é o conjunto de oportunidades oferecidas à parte pela Constituição e pela lei, para que possa demonstrar no processo a veracidade do que afirmam em relação aos fatos relevantes para o julgamento. Ele é exercido mediante o emprego de fontes de prova legitimamente obtidas e a regular aplicação das técnicas representadas pelos meios de prova.
A imensa importância da prova na experiência do processo erigiu o direito à prova em um dos mais respeitados postulados inerentes à garantia política do devido processo legal, a ponto de se constituir em um dos fundamentais pilares do sistema processual contemporâneo. Sem sua efetividade não seria efetiva a própria garantia constitucional do direito ao processo.
O tema da prova é de particular importância na ciência processual "não só pelo valor da reconstrução dos fatos na formação do provimento jurisdicional, mas sobretudo por constituir ponto de observação privilegiado para o estudo das íntimas e complexas relações entre o processo e as estruturas sociais" (Antonio Magalhães Gomes Filho).
Nem a Constituição nem a lei afirmam esse direito de modo amplo e direto, nem existe a garantia constitucional específica e formal do direito à prova, mas ele é com absoluta segurança inferido de alguns de seus textos de amplitude mais geral.
No plano infraconstitucional, o direito à prova está indiretamente afirmado pelo art. 332 do Código de Processo Civil, segundo o qual "todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos em que se funda a ação ou a defesa (v. também art. 32 Lei dos Juizados Especiais). Fala esse dispositivo em meios sem nada dizer sobre as fontes de prova, mas essa omissão é perfeitamente compreensível diante da extrema insegurança com que mesmo a doutrina mais abalizada manipula esses dois conceitos.
Hoje sabemos que fontes de prova são elementos externos ao processo e possivelmente existem até antes dele, sendo representadas por pessoas ou coisas das quais se possam extrair informes úteis ao julgamento; e meios de prova são as técnicas destinadas a atuar sobre as fontes e delas efetivamente extrair o conhecimento dos fatos relevantes para a causa. Sendo uma realidade o generalizado e até promíscuo emprego dos dois vocábulos, no art. 332 do Código de Processo Civil identifica-se a visível intenção de assegurar tanto o direito ao emprego das técnicas (meios de prova), quanto a de submeter a elas os elementos externos úteis e obtidos por modos legítimos (fontes).
A intenção de assegurar o direito às fontes de prova é também revelada pela própria inclusão, no Código de Processo Civil e em leis especiais, de regras referentes a elas (testemunhas, documentos, coisas portadoras de dados que esclarecem fatos).
Na Constituição, o direito à prova é inerência do conjunto de garantias do justo processo, que ela oferece ao enunciar os princípios do contraditório e ampla defesa, culminando por assegurar a própria observância destes quando garante a todos o due process of law (art. 5o, incs. LIV e LV - supra, nn. 94 e 97). Pelo aspecto constitucional, direito à prova é a liberdade de acesso às fontes e meios segundo o disposto em lei e sem restrições que maculem ou descaracterizem o justo processo.
Do encontro entre as garantias constitucionais pertinentes e o disposto no art. 332 do Código de Processo Civil resulta não só a positivação abstrata do direito às fontes e meios de prova instituídos em lei, como ainda aos que, mesmo sem estarem ali especificados, sejam moralmente legítimos. Tais são as provas atípicas, que se resolvem em técnicas de captação de elementos de convicção não definidas por lei (meios atípicos de prova).
Como todo direito, contudo, também este não é irrestrito ou infinito. A Constituição e a lei estabelecem algumas balizas que também concorrem a traçar-lhe o perfil dogmático, a principiar pelo veto às provas obtidas por meio ilícito; em nível infraconstitucional, o próprio sistema dos meios de prova, regido por formas preestabelecidas, momentos, fases e principalmente preclusões, constitui legítima delimitação ao direito à prova e ao seu exercício. Falar em direito à prova, portanto, é falar em direito à prova legítima, a ser exercido segundo os procedimentos regidos pela lei.
No procedimento do mandado de segurança excluem-se de modo absoluto as testemunhas e a prova testemunhal, bem como qualquer perícia - mas a legitimidade dessa fórmula é resguardada pela ressalva de que a denegação do writ por falta de prova não é suscetível de tornar-se imutável por força da coisa julgada material (LMS, art. 15). No processo dos juizados especiais cíveis inexiste perícia formal e há coisa julgada material, mas o acesso a elementos dependentes de conhecimentos técnicos é assegurado mediante a inquirição de testemunhas técnicas e admissibilidade de pareceres técnicos trazidos pelas partes (LJE, art. 35; v. ainda CPC, arts. 421, § 22 e 427: perícia informal).
۩. Provas ilícitas
Provas ilícitas são as demonstrações de fatos obtidas por modos contrários ao direito, quer no tocante às fontes de prova, quer quanto aos meios probatórios. A prova será ilícita - ou seja, antijurídica e portanto ineficaz a demonstração feita - quando o acesso à fonte probatória tiver sido obtido de modo ilegal ou quando a utilização da fonte se fizer por modos ilegais. Ilicitude da prova, portanto, é ilicitude na obtenção das fontes ou ilicitude na aplicação dos meios. No sistema do direito probatório, o veto às provas ilícitas constitui limitação ao direito à prova. No plano constitucional, ele é instrumento democrático de resguardo à liberdade e à intimidade das pessoas contra atos arbitrários ou maliciosos.
A maior parte dos casos de ilicitude da prova consiste na obtenção ilegítima de fontes probatórias pela parte - interceptações telefônicas ou postais, invasão da memória de computador, traslado de peças de processos sujeitos a segredo de justiça, quebra de sigilo bancário sem autorização judicial ou contrária à lei ou ainda mediante a realização de excessos não autorizados ou ilegais, violação do domicílio nessas mesmas circunstâncias etc. É possível ocorrerem ilicitudes dessa ordem por ato do próprio juiz ou com sua participação, como quando ele conceder autorizações ilegais ou requisitar documentos que por lei sejam inacessíveis, ou autorizar interceptações ilegais. A ilicitude dos meios de prova está presente na prática da tortura, ameaça ou extorsão na inquirição de testemunhas ou da própria parte.
O reflexo processual da ilicitude na obtenção ou manipulação das fontes de prova é a absoluta ineficácia da prova realizada através delas, conforme resulta da ,disposição constitucional "são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos" (Const., art. 5o, inc. LVI). Essa regra superior aclara a interpretação do art. 332 do Código de Processo Civil e do art. 32 da Lei dos Juizados Especiais, onde a referência a meios de prova moralmente legítimos deve ser lida como fontes de prova obtidas ou manipuladas por- meios lícitos.
Não importam ilicitude da prova, para os fins do preceito constitucional e conseqüente ineficácia probatória, os defeitos das próprias fontes, como a falsidade do documento trazido ao processo; ou eventuais vícios na produção da prova, como a inobservância do princípio do contraditório; ou ainda a mentira intencional da testemunha. Esses desvios são sancionados pelo sistema processual por outros modos, como a negação de credibilidade e poder de convicção, a repetição do ato ou a própria possibilidade de rescisão da sentença por falsidade. Trata-se de ilicitudes, quando tomado esse vocábulo em sentido bastante amplo, mas não é dessas ilicitudes que cuida o veto constitucional.
A ineficácia das provas ilícitas constitui opção do constituinte de 1988, que, sensível a clamores de parte da doutrina (Ada Pellegrini Grinover), quis ir além da mera imposição de sanções severas aos autores de ilicitudes na captação de fontes probatórias ou na realização da prova. Em si mesma, essa opção radical transgride princípios constitucionais do processo ao exigir que o juiz finja não conhecer de fatos seguramente comprovados, só por causa da origem da prova: a parte, que nem sempre será o sujeito responsável pela ilicitude (mas ainda quando o fosse), suportará invariavelmente essa restrição ao seu direito à prova, ao julgamento segundo a verdade e à tutela jurisdicional a que eventualmente tivesse direito. Mas o Supremo Tribunal Federal já foi além, ao adotar a conhecida teoria dos frutos da árvore contaminada para tachar de ineficazes as fontes de prova obtidas e também os meios de prova realizados em desdobramento de informações obtidas mediante ilicitudes. Essa extremada radicalização compromete de morte o acesso à justiça e constitui grave ressalva à promessa constitucional de tutela jurisdicional a quem tiver razão (Const., art. 5o, inc. XXXV).
Segundo a tese então adotada seriam ineficazes, p.ex., todos os testemunhos prestados por pessoas cujos nomes tivessem sido revelados numa conversação telefônica registrada em fita e depois desgravada, ou toda prova pericial realizada na contabilidade de uma pessoa ou empresa referida em apontamentos obtidos ilicitamente. Seria imoral a utilização dessas provas no processo, ou imoral será tanto zelo pela intimidade de pessoas de cujo comportamento contrário ao direito e à sociedade já não se tem dúvida? A tese dos frutos da árvore contaminada pode ainda prestar-se a manipulações maliciosas, mediante as quais o sujeito consiga pôr os fatos de sua vida ou de seus negócios a salvo de qualquer investigação eficaz (Barbosa Moreira).
۩. A iniciativa da prova pelo juiz
Prepondera largamente no processo civil a regra de que em princípio competem às partes a busca de fontes de prova e a iniciativa de incluí-Ias na instrução processual, não cabendo ao juiz senão recebê-las, processar os meios de prova segundo os procedimentos que a lei estabelece e afinal levar em conta os resultados, ao julgar. Essa passividade judicial integra os modelos do processo civil dispositivo clássico, em que ao juiz é imposto um comportamento estático e receptivo, sete outra missão no curso do procedimento senão a de dirigi-lo e chamá-lo à ordem quando necessário.
A premissa central desse sistema é a disponibilidade dos direitos materiais em conflito, que teria por conseqüência processual a outorga às partes da ampla liberdade de serem mais atuantes ou menos, em relação à instrução da causa, suportando depois as conseqüências de suas próprias omissões: se lhes é lícito dispor dos direitos, transigir, renunciar a eles etc., também seria legítimo deixar que elas causassem indiretamente o perecimento deles, omitindo-se em provar as alegações das quais dependem a defesa e a vitória na causa.
A visão tradicional do processo civil dá excepcional importância ao interesse como mola propulsora da atividade das partes, atuando cada qual segundo seu próprio desejo de fazer prevalecer suas razões e seus alegados direitos - e sobre essa premissa apóia-se a legitimidade do comportamento puramente passivo do juiz, quando elas se omitem. Tanto quanto a iniciativa do processo, a das provas teria também o efeito perverso de favorecer o excessivo envolvimento psicológico do juiz nos conflitos, o que lhe comprometeria a imparcialidade (Liebman).
Essa concepção radical tende no entanto a ser superada, mitigando-se gradualmente a lógica do raciocínio privatista que lhe está à base, seja porque nem só de direitos disponíveis o processo civil trata, seja porque ao juiz de hoje cabe um comportamento dinâmico no processo (ativismo judicial: supra, n. 88). Não há mais clima para tanto predomínio do princípio dispositivo, que exclui os comportamentos inquisitivos do juiz no processo e na sua instrução. Aquela idéia radical é espelho das premissas privatistas do processo civil, que hoje é reconhecidamente informado pela natureza de instituto de direito público.
O princípio dispositivo é a matriz das regras e sistemas pelos quais ao juiz não competem iniciativas probatórias. Associa-se ao princípio da demanda, que fada o juiz à inércia inicial e só admite a instauração do processo por iniciativa de parte e ambos têm fundamento na disponibilidade dos direitos e do próprio poder de ação. A similitude vocabular é grande e gera alguma confusão, não sendo a doutrina unânime nem constante nessas distinções terminológicas. Em síntese, (a) o veto à iniciativa do processo pelo juiz é inerente ao princípio da demanda (arts. 24 e 262 CPC); b) a proibição de fazer-se ativo na busca de elementos de convicção, agora já no processo instaurado e pendente, é a expressão do princípio dispositivo.
Há situações em que as omissões probatórias das partes seriam capazes de comprometer direitos sobre os quais elas não têm disponibilidade alguma, ou não têm toda disponibilidade. Assim são as relações de direito de família, de modo geral regidas por fundamentos de ordem pública relacionados com as repercussões que os resultados do processo podem projetar na própria estrutura da sociedade. Assim são também as relações de massa, envolvendo comunidades ou grupos mais ou menos amplos, o que também tem por conseqüência as repercussões erga omnes ou ao menos ultra partes daquilo que vier a ser julgado - como sucede nas causas relacionadas com o meio-ambiente, valores culturais ou históricos, consumidores (CDC, art. 103) etc.
Para esses casos, ordinariamente a lei vale-se da Instituição do Ministério Público, que por definição é o guardião do interesse público (supra, n. 369) e, ao dar-lhe legitimidade para instaurar o processo ou exigir-lhe participação naqueles que forem instaurados por iniciativa de outrem, procura a fidelidade dos julgamentos ao direito objetivo e à realidade dos fatos. Mesmo assim, há sempre o risco de perdurarem deficiências probatórias, a dano da sociedade como um todo, de comunidades inteiras ou de grupos expressivos de pessoas.
Além disso, as desigualdades econômicas e culturais são capazes, quando incontroladas, de conduzir o processo à produção de resultados distorcidos em razão de insuficiências probatórias resultantes das desídias daquele que não se defendeu melhor porque não pôde; e, por expressa determinação legal, o juiz tem o dever de promover o equilíbrio das partes no processo, assegurando aos litigantes a paridade em armas que o princípio isonômico exige (CPC, art. 125, inc. I). Para esse fim e para a efetividade da garantia constitucional da ampla defesa, há situações em que a intervenção do juiz na busca e produção de meios de prova se mostra vital. Sua intervenção é importante, ainda, quando as partes se valem do processo com o objetivo de obter resultados ilegais (art. 17, inc. III), como a fraude à lei ou embuste a terceiros.
Acima de todas essas razões paira ainda a consciência de que no Estado moderno a jurisdição é uma função pública por excelência, voltada a escopos associados ao interesse da sociedade como um todo (escopos sociais, políticos, jurídico): aos juizes não cumpre atuar como meros homologadores de condutas dos particulares. Há situações em que a própria função jurisdicional ficaria desmerecida e desviada de seus rumos, quando o juiz fosse obrigado a conformar-se e afinal, como Pôncio Pilatos, lamentar a injustiça mas permitir que prevalecesse.
A experiência mostra que a imparcialidade não resulta comprometida quando, com serenidade e consciência da necessidade de instruir-se para melhor julgar, o juiz supre com iniciativas próprias as deficiências probatórias das partes. Os males de possíveis e excepcionais comportamentos passionais de algum juiz não devem impressionar no sentido de fechar a todos os juizes, de modo absoluto, as portas para um sadio ativismo.
Diante disso e na linha das tendências do processo civil moderno, o Código contém um conjunto harmonioso de disposições que investem o juiz do poder-dever de tomar iniciativas probatórias em alguns casos. Isso é feito mediante (a) a genérica imposição do dever de assegurar a igualdade entre as partes (art. 125, inc. I), para efetividade da garantia instituída no art. 5-, caput, da Constituição Federal; b) a determinação, também ampla, de que o juiz, a requerimento ou mesmo ex officio, faça realizar todas as provas necessárias à instrução da causa (art. 130); c) a ordem de convocar a qualquer tempo as partes para deporem sobre os fatos da causa, também sem que necessariamente isso haja sido requerido (art. 342); d) a autorização de inquirir testemunhas referidas, que são pessoas que os elementos de prova já realizados indiquem serem conhecedoras dos fatos (art. 418, inc. 1); e) a autorização a mandar fazer nova perícia quando a primeira tiver sido insatisfatória (art. 437); f) idem, quanto às inspeções judiciais a serem feitas por iniciativa do próprio juiz (art. 440).
Esse quadro de disposições convergentes constitui importante abertura à mitigação dos rigores do princípio dispositivo e impõe que o próprio sistema do Código de Processo Civil seja interpretado como o de um prudente compromisso entre esse princípio e o seu oposto, o inquisitivo. Tais disposições associam-se também ao amplo podei, que tem o juiz, de formar livremente seu convencimento racional sobre a ocorrência ou inocorrência dos fatos relevantes para o julgamento, proclamado no art. 131 do Código de Processo Civil e reconhecido como um dos pilares fundamentais do direito probatório - porque, permanecendo ele em estado de dúvida, é natural que possa buscar satisfação mediante a realização de novas provas, ainda quando não requeridas.
A fórmula do desejável compromisso de equilíbrio entre o modelo dispositivo e o inquisitivo consiste em prosseguir reconhecendo a estática judicial como norma geral, mas mandar que o juiz tome iniciativas probatórias em certos casos. É impossível traçar uma linha razoavelmente nítida entre o largo campo da proibição e os pequenos oásis de ativismo, mas alguns critérios razoavelmente objetivos existem e são capazes de iluminar a questão.
Diante da omissão das partes, o juiz deve determinar de oficio a realização de provas em causas associadas ao estado ou à capacidade das pessoas, como ações de separação judicial, de divórcio ou conversão daquela neste, investigação de paternidade, interdição, guarda de filhos, suspensão ou destituição do pátrio-poder etc.; também nas ações coletivas, especialmente quando promovidas por associações, as quais nem sempre são patrocinadas adequadamente; idem, em ações populares; e, em causas de qualquer espécie, quando se aperceber de que a omissão é fruto da pobreza, de deficiências culturais das partes ou da insuficiência do patrocínio que lhes está ao alcance (especialmente, em casos de assistência judiciária) etc.
De um modo geral, ele tem também esse dever sempre que os próprios elementos de prova já produzidos evidenciem ou insinuem de modo idôneo a existência de outros inexplorados pelas partes e relevantes para o bom julgamento da causa (testemunha referida, requisição de documentos, perícias que venham a mostrar-se indispensáveis, inspeções judiciais etc.): novas diligências determinadas pelo juiz nessas circunstâncias são genericamente autorizadas pelo art. 130 do Código de Processo Civil e concorrem para o correto exercício da própria função jurisdicional.
Em ações de investigação de paternidade, chega a ser absurda a imobilidade do juiz que deixe de determinar a realização da prova técnica por não haver o autor feito requerimento nesse sentido (HLA, DNA).
Mas há também forças divergentes, que impedem ou desaconselham as iniciativas probatórias do juiz. Assim é, sempre que as alegações de uma parte sejam por lei dispensadas de prova - como em caso de notoriedade do fato ou presunções legais ou judiciais: havendo norma que exclua do objeto da prova esses fatos e suas alegações (art. 334, incs. I, III e IV), em princípio eventual prova seria uma superfetação ou contrariedade ao sistema e aos intuitos do legislador.
A revelia do demandado, que se situa entre os casos de dispensa de prova, não produz esse efeito (efeito da revelia, art. 319) quando os fatos alegados pelo autor são impossíveis ou mesmo inverossímeis. Nessas hipóteses, ou quando não houver segurança quanto à efetividade da própria citação (citação por edital ou hora-certa etc), ou ainda quando o réu for visivelmente pobre ou despreparado, a revelia não é fator excludente do poder-dever de determinar provas ex officio.
Como regra geral e inerência do fundamental princípio dispositivo, o juiz não deve exceder-se em iniciativas probatórias ou liberalizar ajudas às partes, sob pena de transmudar-se em defensor e acabar por perder a serenidade, além de comprometer, pela perda de tempo, o pontual cumprimento de seus próprios deveres perante a massa dos consumidores do serviço jurisdicional.
Em síntese: com algumas razões convergentes ao dever judicial de tomar iniciativas quanto à prova coincidem certas razões opostas, que aconselham menor ativismo do juiz. As forças que impelem o juiz ao ativismo probatório são (a) o dever de promover a igualdade entre os litigantes, (b) a dignidade da jurisdição, que quer o juiz como agente da justiça e não mero refém das condutas e omissões das partes e (c) a indisponibilidade dos direitos e relações jurídico-substanciais em certos casos. Em sentido oposto: a) a ordinária disponibilidade dos direitos versados em processo civil, (b) o conseqüente caráter predominantemente dispositivo deste, (c) o sistema de ônus processuais, pelo qual em princípio cada qual responde por suas próprias omissões e (d) a necessária imparcialidade do juiz (José Roberto dos Santos Bedaque).
۩. Temas de direito probatório
O conteúdo do direito probatório consiste na determinação das alegações suscetíveis de demonstração por via da prova (objeto da prova), na distribuição do encargo de prová-las e conseqüências da falta de prova suficiente (ônus da prova), na definição dos elementos exteriores sobre os quais essas atividades incidem (fontes de prova), nas próprias atividades processuais destinadas à comprovação das alegações (meios de prova) e na disciplina do valor das provas e modo como devem ser apreciadas (valoração da prova).