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Em razão da poderosa influência que as indústrias culturais exercem nesse campo, o direito autoral não vem servindo como estímulo à criatividade humana.
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Resumo: desde o advento da Revolução Francesa, o objetivo do direito autoral: fomento à cultura, vem sendo repetido à exaustão. O direito autoral, nesta visão, serviria assim como um estímulo à criatividade humana. O autor, por determinado período, gozaria da possibilidade de explorar economicamente de forma exclusiva sua obra e, em contrapartida, após este lapso de tempo, a coletividade poderia utilizar livremente a criação intelectual. Entretanto, a realidade atual, sobretudo em razão da poderosa influência que as indústrias culturais exercem nesse campo, oferece motivos de sobra para duvidarmos que esse objetivo esteja sendo cumprido. Examinar criticamente a realização desse propósito pelo direito autoral é, em suma, a proposta deste artigo.
Palavras-chave: Direito Autoral.Indústrias culturais. Produtos culturais.
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Direito de autor ou de empresário?
Jus Navigandi
http://jus.uol.com.br
Indústrias culturais e direito autoral na contemporaneidade
http://jus.uol.com.br/revista/texto/18293
Publicado em 01/2011
Em razão da poderosa influência que as indústrias culturais exercem nesse campo, o direito autoral não vem servindo como estímulo à criatividade humana.
Resumo: desde o advento da Revolução Francesa, o
objetivo do direito autoral: fomento à cultura, vem sendo repetido à
exaustão. O direito autoral, nesta visão, serviria assim como um estímulo à
criatividade humana. O autor, por determinado período, gozaria da possibilidade
de explorar economicamente de forma exclusiva sua obra e, em contrapartida,
após este lapso de tempo, a coletividade poderia utilizar livremente a
criação intelectual. Entretanto, a realidade atual, sobretudo em razão da
poderosa influência que as indústrias culturais exercem nesse campo, oferece
motivos de sobra para duvidarmos que esse objetivo esteja sendo cumprido.
Examinar criticamente a realização desse propósito pelo direito autoral é,
em suma, a proposta deste artigo.
Palavras-chave: Direito Autoral.Indústrias
culturais. Produtos culturais.
1. Breve desenvolvimento dos direitos intelectuais
O conceito jurídico de propriedade, desenvolvido a partir do
Direito Romano (753 A. C.) e aperfeiçoado ao longo do tempo, consiste em uma
relação entre o indivíduo (o dono) e a coletividade, em virtude da qual são
assegurados àquele direitos exclusivos de usar, fruir, dispor e reivindicar um
bem (FIUZA, 2002, p. 748).Tradicionalmente fala-se em propriedade sobre bens tangíveis,
corpóreos, materiais, como uma casa, um carro ou qualquer outro objeto
(SALINAS, 2005, p. 19). Porém, ao longo da história, mais nitidamente a partir
do século XV com a invenção da imprensa por Gutenberg (inovação
tecnológica que possibilitou a reprodução de textos e obras literárias em
mais de um exemplar), começou a tornar-se mais evidente a noção de
propriedade sobre bens imateriais, intangíveis, incorpóreos, ou seja, sobre os
frutos do gênio humano (ASCENSÃO, 1997, p. 4; BITTAR, 2005, p. 12; PATTERSON,
1968, p. 4; SALINAS, 2005, p. 19). De acordo com Abrão (2002, p. 27):O surgimento da máquina de escrever, da máquina de imprimir
com tipos móveis, em 1450, a uma velocidade dezenas de vezes maior que o
registro manual, foi o ponto de virada no surgimento desse direito [propriedade
intelectual] em virtude da infinita capacidade de reprodução de um mesmo
texto, pela máquina, dispensando novas interferências dos autores.O invento de Gutenberg impulsionou os primeiros privilégios
outorgados pela realeza aos editores (impressores) de livros (SALINAS, 2005, p.
22). Ressalte-se que nesse período eram conferidos pelo poder real aos editores
(e não aos próprios criadores, vale destacar) o monopólio de reprodução (cópia)
da obra intelectual. De acordo com Salinas (2005, p. 22), este contexto
representa uma espécie de panorama antecessor do sistema de propriedade
intelectual (ou direitos intelectuais).Essa noção sobre a propriedade de bens intangíveis foi se
aprimorando e aprofundando à medida que o invento de Gutenberg se tornava mais
popular e difundido. Tamanha foi a difusão dessa tecnologia que,
inevitavelmente, formou-se uma indústria de impressão, consistente na
reprodução e comercialização de livros. Com o decurso do tempo e o natural
aumento de complexidade das relações envolvendo o mercado de livros, sentiu-se
a necessidade de melhor regular essa nova indústria, surgindo, assim, o
Ato da Rainha Ana (Statute of Anne – Inglaterra, 1709), um diploma
legal considerado por muitos estudiosos (BITTAR, 2005, p. 12; PATTERSON, 1968,
p. 143; SALINAS, 2005, p. 23) como um relevante marco na linha evolutiva
histórica da propriedade intelectual. Conforme expõe Patterson (1968, p. 143),
apesar de não ter tido como objetivo precípuo beneficiar a figura do criador
intelectual, o Ato da Rainha Ana revela-se importante uma vez que limitou os
privilégios dos editores de livros. Dentre essas limitações, cabe destacar
que o privilégio de cópia dos editores, que antes era perpétuo, passa a ser
limitado a 21 anos (Op. cit., 1968, p. 143). Esta imposição de limitação de
tempo fundou o domínio público na literatura (ABRÃO, 2002, p. 29). Ou seja,
terminado o prazo do impressor, o livro passaria a integrar o domínio público,
significando isso que, não só o livro poderia ser reproduzido por outras
pessoas, como os indivíduos poderiam usar livre e gratuitamente a obra
literária. Percebe-se com esse cenário que, cada vez mais ia se formando um
feixe de direitos voltado à proteção das criações do espírito humano
(SALINAS, 2005, p. 20).No entanto, consoante apontam Abrão (2002, p. 28), Ascensão
(1997, 2004, p. 5, 4), Bittar (2005, p. 8) e Salinas (2005, p. 23), foi a
Revolução Francesa (século XVIII), com seus ideais libertários, que,
definitivamente, impulsionou os contornos fundamentais do direito de propriedade
intelectual tal qual o conhecemos na atualidade. Este episódio histórico teve
grande impacto na formação do sistema contemporâneo de propriedade
intelectual. Dentre as inovações que a Revolução Francesa trouxe à seara
dos direitos intelectuais, algumas merecem destaque especial. A primeira
novidade constituiu na extinção dos privilégios (monopólios) dos editores
(ASCENSÃO, 2004, p. 4). Ao mesmo tempo em que os privilégios foram suprimidos,
o autor foi colocado no centro das relações jurídicas envolvendo
criações intelectuais. Não se falava mais em privilégio ou monopólio, mas
agora já se falava em um direito do autor (le droit d’auteur),
já se dizia numa propriedade do autor sobre a obra intelectual (ABRÃO,
2002, p. 30; ASCENSÃO, 2004, p. 4). Isto, segundo Ascensão (1997, 2004, p. 5,
4), configura uma relevante mudança estratégica no pensamento em torno das
relações jurídicas que envolviam as criações intelectuais. Passava-se de privilégios
de editores para direitos de autores.
2. A Revolução Francesa e o delineamento do objetivo do
direito autoral
Dentre os impactos proporcionados pela Revolução Francesa
na propriedade intelectual, há um aspecto que reputamos de suma relevância
para os fins do presente trabalho. Tal aspecto é o fato de que o contexto da
Revolução Francesa tornou mais inteligível a função dos direitos
intelectuais: fomento à difusão da cultura (ASCENSÃO, 2005, p. 15).
Mais nitidamente do que em outros episódios históricos, estabeleceu-se a
razão de ser da propriedade intelectual, qual seja, a de estimular a
propagação da cultura. Esta foi a característica marcante deste feixe de
direitos que, despontada nos anos da Revolução, impregnou o sistema de
propriedade intelectual de tal maneira que subsistiu até os dias atuais. Assim,
deve ficar claro que o propósito dos direitos intelectuais é o de proporcionar
o aumento da bagagem cultural humana (ABRÃO, 2002, p. 36; ASCENSÃO, 2005, p.
15; LEMOS, 2005, p. 65, 66; LESSIG, 2004, p. 131, 296; POST, 2002, p. 113;
VAIDHYANATHAN, p. 5).É fundamental destacar também que essa função da lei de
propriedade intelectual de fomento à cultura se realiza através da promoção
de um equilíbrio entre os interesses da sociedade e os dos autores (CROSNIER,
2005, p. 146; POST, 2002, p. 115; LESSIG, 2004, p. 221). Este equilíbrio se dá
da seguinte forma. De um lado a lei confere ao criador o direito de, durante certo
período, explorar economicamente sua obra intelectual com exclusividade.
De outro lado a lei estabelece que terminado o período de exclusividade do
autor, a obra passa a poder ser utilizada de forma livre e gratuita pela
coletividade. Entende-se que o lapso de tempo de exclusividade do autor, ao
permitir que este aufira proveito econômico de sua obra da maneira que entender
mais adequada, representa um estímulo para que o mesmo continue criando. Do
mesmo modo, compreende-se que, tendo a sociedade suportado o ônus do período
de exclusividade do criador, nada mais justo que a obra possa doravante ser
usada livre e gratuitamente pela sociedade, surgindo assim o que se chama de domínio
público. Como diz Bittar (2005, p. 112) o aproveitamento ulterior da obra
pela coletividade representa "uma espécie de compensação, frente ao
monopólio exercido pelo autor". A entrada da obra em domínio público
significa assim um modo de compensar a sociedade que, durante o prazo de
monopólio do autor, quedou-se impossibilitada de usar a obra livremente.
A razão do autor gozar de um período determinado de
exclusividade está assentada, principalmente, em dois motivos. Primeiro, no
fato do autor retirar da própria sociedade, ou seja, do próprio domínio
público,elementos para a criação de sua obra intelectual (BITTAR,
2005, p. 55; LESSIG, 2004, p. 22; SMIERS, 2005, 2006, p. 183, 107). Sustenta-se,
portanto, que, como foi retirado do domínio público, ou seja, da nossa
herança cultural comum, idéias, elementos para a criação da obra
intelectual, esta, após o período de exclusividade do autor, deve retornar à
coletividade. A respeito, assevera Smiers (2005, p. 183, 184):
Na maioria das culturas ainda é uma prática diária
normal considerar que a criação e a apresentação sejam um processo
corrente de empréstimo e adaptação. Não se concebe a idéia de que alguém
possa ser o dono exclusivo de uma obra de arte. [...] a grande maioria dos
trabalhos tem suas raízes no domínio público. Não sejamos românticos:
não tem fundamento pensar que um gênio cria do nada [...].
No mesmo sentido, reforça Abrão (2002, p. 36):
O fundamento da temporariedade está baseado no direito que
possui a sociedade ao retorno, à devolução, de tudo o que dela o próprio
autor extraiu para criar sua obra, porque fruto de seu meio e de sua
história. Essa solidariedade, então, garante por determinado tempo a
exclusividade ao autor no uso e gozo da obra criada, para depois, com a queda
em domínio público, ser repartida e aproveitada por todos aqueles que
compõem o meio social, como mola propulsora da cultura.
O segundo motivo que leva a limitar o período de
exclusividade do autor consiste no fato de que há um forte interesse da
comunidade na circulação livre e gratuita dos bens culturais (SALINAS, 2005,
p. 24). Isto porque esta circulação promove, obviamente, um acesso mais amplo
aos produtos culturais, ponto fundamental para o desenvolvimento da sociedade.
Assim, pelo que foi exposto acima, vê-se que os direitos
intelectuais lidam com interesses notoriamente antagônicos. De uma banda, o
interesse privado do autor e, de outra, o interesse público da coletividade. É
através da busca de um ponto de equilíbrio adequado (que não proteja em
excesso a figura do autor, sufocando, assim, o domínio público; e que também
não defenda demasiadamente o domínio público, desestimulando, desse modo, o
fazer artístico), que a lei de propriedade intelectual visa atingir seu
propósito último de estimular a difusão da cultura (POST, 2002, p. 115).
3. O objetivo do direito autoral em questão
Porém, na realidade atual, há razões de sobra para
contestarmos que a legislação de propriedade intelectual esteja em equilíbrio
e que, por via de conseqüência, esteja fomentando a propagação da cultura.Dentre as diversas causas que poderíamos abordar, tendo em
vista os fins desse trabalho, escolhemos duas que reputamos essenciais para
sustentar a afirmação feita acima. A primeira diz respeito ao tempo de
proteção da obra intelectual e a segunda refere-se à extensão da malha dos
direitos intelectuais. Abaixo, iremos sucintamente explicitá-las.Com relação ao tempo de proteção da obra intelectual,
segundo criticam Ascensão (2004, p. 11), Fisher (2004, p. 152), Lemos (2005, p.
12), Lessig (2004, p. 292), Litman (2001, p. 79), Smiers (2005, p. 183),
Vaidhyanathan (2001, p. 80), o mesmo é excessivo. O Brasil e os EUA são dois
bons exemplos disso.A legislação brasileira (art. 41 da Lei 9.610/98), seguindo
a tendência mundial, estabelece como regra que a obra intelectual de cunho
estético (música e livro, v. g.) receba proteção durante toda a vidado autor e mais 70 anos após a sua morte. Este é o termo de exclusividade
que goza o criador. Apenas após o fim deste lapso de tempo (vida do autor e
mais 70 anos após o falecimento) é que a obra intelectual integrará o
domínio público, podendo então finalmente ser usada livre e desoneradamente
por todos os interessados.Nos EUA, a realidade não é muito diferente. O termo de
exclusividade do autor é igual ao brasileiro: vida do criador mais 70 anos
após a sua morte (LESSIG, 2004, p. 292). Chegou-se a este prazo após o mesmo
ter sido ampliado uma série de vezes pelo Congresso Norte-Americano. Só de
1962 até os dias atuais, foram 11 extensões (Op. cit., p. 134). Cabe ressaltar
que, da formação da República Norte-Americana até a data mencionada acima
(1962), a lei só havia sido alterada nesse sentido 3 vezes (Op. cit., p. 134).Apesar de termos usado como exemplo apenas as duas nações
acima, poderíamos incluir aqui quase todos os países do mundo, haja vista
existir um padrão fundamental em matéria de direitos intelectuais. Isto
é assim porque a maioria esmagadora dos Estados são signatários da
Convenção de Berna (1886), um dos mais importantes acordos internacionais de
proteção à propriedade intelectual e que orienta a legislação interna
referente a direitos intelectuais dos diversos países (ASCENSÃO, 1997, p.
639).Entende-se que os termos atualmente praticados sobrecarregam
o domínio público, pois, impedem que a obra seja usada livremente pela
sociedade durante um exacerbado lapso de tempo. Há assim desequilíbrio da lei
de propriedade intelectual que, estabelecida desse modo, confere acentuada
proteção a interesses privados em detrimento da coletividade. Critica José de
Oliveira Ascensão (2004, p. 11) afirmando que "[...] o exclusivo autoral
atingirá com freqüência 150 anos, se as obras forem criadas na juventude do
autor [...]".Outro ponto que precisa ser abordado refere-se à exagerada
extensão (escopo) hodierna da malha da legislação de propriedade
intelectual. A lei protege não só a obra intelectual, mas também aquilo que
se parece, ainda que vagamente,com ela (SMIERS, 2005, p. 183).
Estamos falando aqui das chamadas obras intelectuais derivadas (derivative
works) [01].Exemplo simples disso: se pretendo fazer um filme baseado num
livro que ainda não ingressou no domínio público, precisarei da autorização
do autor da obra literária para levar a frente meu intento. Vale dizer, a lei
de propriedade intelectual atual protege não só a obra em si, mas qualquer
transformação, adaptação e construção baseada na mesma (ABRÃO, 2002, p.
37, 83; ASCENSÃO, 2005, p. 15; LESSIG, 2004, p. 19).A crítica que se faz aqui é que essa proteção espessa,
que se vê no caso das obras intelectuais derivadas, embaraça, atravanca o
fazer artístico (VAIDHYANATHAN, 2001, p. 16). Em suma, inibe a criatividade (DEMERS,
2006, p. 4). Afirma-se isto porque a necessidade de conseguir a permissão do
autor durante o prazo de exclusividade deste para transformar a obra (algo que
frequentemente envolve dispêndio de capital) é um fator que obstrui,
desestimula o surgimento de novas criações intelectuais. Além disso, há que
ser ressaltado o constantemente temor dos novos criadores de sofrer os
dissabores de processos judiciais [02] milionários em razão do uso
não autorizado de obras intelectuais (VAIDHYANATHAN, 2001, p. 14). Tal
realidade desconfortável é sentida intensamente pelos artistas que pertencem
aos gêneros musicais do rap [03], hip hop, e
igualmente por DJ’s, por exemplo, uma vez que o fazer artístico desses
autores baseia-se frequentemente em obras musicais pré-concebidas (DEMERS,
2006, p. 7; LESSIG, 2004, p. 285; VAIDHYANATHAN, 2001, p. 14).Logo, tem-se aqui outra demonstração de desajuste da lei de
propriedade intelectual, que, ao invés de funcionar como mola propulsora da
cultura (ABRÃO, 2002, p. 36), serve de instrumento de empobrecimento
desta (VAIDHYANATHAN, 2001, p. 16).
4. Direito de autor ou de empresário?
Diante das críticas apresentadas acima, é preciso
questionar o que estaria conduzindo os direitos intelectuais a essa situação
desarmônica? Ou melhor: quais interesses estariam por trás da tendência
mundial atual, cada vez mais acentuada, de extensão de prazo e de alcance da
lei de propriedade intelectual? A resposta para essa pergunta merece uma
investigação detalhada. É preciso perceber que o que está impulsionando os
direitos intelectuais para essa situação de desajuste crescente é o poder de
persuasão exercido pelo influente lobby das indústrias culturais
[04] (hoje denominadas de indústriasde entretenimento oude conteúdo) sobre os organismos nacionais e internacionais que
legislam e julgam a matéria. Corroborando esse extraordinário poder de
persuasão, como não mencionar aqui os constantes ataques que a indústria
fonográfica, um dos principais elementos integrantes das indústrias culturais,
vem promovendo contra o uso de inovações tecnológicas atreladas à internet
(ASCENSÃO, 2004, p. 2; BANDEIRA, 2006, p. 2). O programa Napster é um
dos exemplos mais emblemáticos disso (POST, 2002, p. 108). Mas, nesse momento,
outra questão poderá aflorar: qual a intenção das indústrias culturais em
pressionar os organismos legislativos a fim de alargar, cada vez mais, os
horizontes da propriedade intelectual? Estariam, por acaso, agindo genuinamente
em defesa da classe artística? Advogando puramente em prol dos direitos dos
autores? Apesar de esta ser a mensagem muitas vezes divulgada para o público (LESSIG,
2004, p. 256, 262), a resposta é negativa. O precípuo interesse das
indústrias culturais em ampliar a abrangência da propriedade intelectual é o
de assegurar um aumento de suas respectivas receitas [05] através da
exploração econômica dos produtos culturais sob o seu domínio. Há este
interesse porque, especialmente a partir do final do século XX, essas
indústrias, além de terem incorporado um rol de atividades mais e mais
complexas, conforme apresenta Vogel (2007, p. 23), agregaram para si a função
de gerir e arrecadar os direitos intelectuais de diversos produtos culturais.
Não é por outra razão que Joost Smiers (2006, p. 91) afirma que a propriedade
intelectual "está se tornando um dos mais valiosos produtos comerciais do
século XXI". Atento a isso, Jacquet (1997 apud SMIERS, 2006, p. 92) afirmaAs fusões atuais [das indústrias culturais] não são
apenas sobre como conseguir uma fatia maior do mercado comprando outro selo
musical, estúdio de filmagem ou editora de livros. São também sobre a
aquisição dos direitos musicais, de filmagem e publicação. Trata-se de um
investimento no capital intelectual, na expressão criativa – a mais valiosa
mercadoria do século XXI.
No campo da música, por exemplo, Bandeira (2006, p. 6)
reforça o que está sendo exposto aqui
[...] as grandes gravadoras projetam atividades que vão
além do simples processo de gravação e venda de discos. Elas aglutinam,
também, os processos de edição de obras musicais, controle de royalties e
direitos autorais, de distribuição, divulgação, marketing,
comercialização e, em inúmeros casos, de agenciamento dos artistas.
Portanto, deve ser visto com reserva o discurso das
indústrias culturais de, em nome da figura do autor, estender o alcance
da propriedade intelectual e combater a utilização de tecnologias de
propagação de produtos culturais (Napster, p. ex.). Na verdade, o autor,
como bem identifica Ascensão (2005, p. 16)
[...] é hoje, no aparente empolamento dos seus direitos, o
grande esquecido, quando não o grande mudo. Não sabe normalmente quais os
seus direitos e é cilindrado por entidades desmedidamente mais poderosas,
para quem as vantagens ao final revertem. É necessário restituir o
protagonismo ao autor e aos artistas, para que não aconteça que eles sirvam
para dar a justificação da proteção mas que os beneficiários reais da
proteção sejam outros, para quem essa proteção reverta. Ou seja: para que
não aconteça que eles sejam a pessoa de quem se fala mas não a pessoa que
fala e muito menos a pessoa por quem se fala.
Na mesma linha, expõe Crosnier (2005, p. 146):
Durante os últimos anos tais direitos estão sendo
questionados pelas grandes empresas e os grupos de pressão, que possuem [...]
‘catálogos de direitos’ e pretendem atuar em nome dos autores. O público
crédulo acredita estar defendendo Flaubert ou o cantor desconhecido, mas se
vê embarcando numa tentativa de [financiar] a cultura empreendida pela
Microsoft, Elseiver, Vivendi-Universal e companhia.
Smiers (2005, p. 183, 188), seguindo esse mesmo raciocínio,
argumenta que o atual sistema de propriedade intelectual, na realidade,
beneficia a poucos artistas. Logo, as empreitadas das indústrias culturais em
nome do fortalecimento desse feixe de direitos não beneficia a maioria classe
artística, mas sim a interesses específicos. Este autor inclusive, por conta
dessa situação desigual, em sua obra Artes Sob Pressão (2006), propõe
a abolição do direito autoral. Smiers (2006) propõe assim um sistema
alternativo de proteção às criações intelectuais, calcado em um sistema de
fundos especiais destinados à remuneração dos artistas.
5. Conclusão
Diante do desarmônico panorama apresentado, é
imprescindível repensar o atual modelo de direito de autor praticado. Os rumos
que, desde o final do século XX, este feixe de direitos está tomando,
seguramente, não condizem com o seu propósito fundamental: de estimular o
incremento da nossa bagagem cultural. Na base desse novo quadro, vimos que a
indústria cultural exerce poderosa influência. Prosseguindo nesse caminho
observaremos, indubitavelmente, um significativo empobrecimento da criatividade
humana, algo que já pode, inclusive, ser vislumbrado na atualidade.
O prazo geral de exclusivo do autor praticado pela maioria
dos países do globo, inclua-se neste rol o Brasil, representado pela vida do
autor e setenta anos após o falecimento deste, é excessivo. Sobrecarrega o
domínio público. A circulação livre das obras através do domínio público
é fundamental para o surgimento de tantas outras. Do mesmo modo, sacrifica em
demasiado o domínio público, as limitações legais impostas aos chamados derivative
works. Pensamos que ambos os prazos precisam sofrer reduções.
Todas essas mudanças legais levaram a uma ampliação sem
precedentes históricos dos direitos da propriedade intelectual. Isto traz
vários problemas. Em primeiro lugar, deturpam a razão própria de existir do
direito autoral: incentivar a criação de novas obras, remunerando os autores,
e maximizar a circulação das obras na sociedade. Ambos objetivos são
contrariados, pois tais mudanças protegem muito mais os intermediários
do que os autores, já que reduzem canais e aumentam os custos de
circulação das obras (LEMOS, 2005, p. 136).
Promover essas mudanças, no entanto, reconhecemos não ser
uma tarefa fácil. Exige a formação de um consenso na sociedade a respeito da
necessidade dessas alterações, sendo que o primeiro passo para que isto ocorra
é exatamente a circulação das idéias a esse respeito. Nesse sentido,
arremata Ascensão (2005, p. 17): "[...] é vital que as instituições
culturais e os autores se encontrem diretamente, dialoguem, procurem caminhos de
fomento e difusão cultural e de apoio e incentivo à criação".
6. Referências bibliográficas
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of intellectual property and how it threatens creativity. New
York University Press, 2001.
Notas
- Na lei brasileira essa proteção vem tratada no art. 29, inciso III,
da Lei 9.610/98; na Convenção de Berna, no art. 2º, alínea 3.- Aqui cabe lembrar um caso conhecido por muitos envolvendo os músicos
Jorge Ben Jor e Rod Stewart em que o primeiro ameaçou ingressar com um processo
judicial contra o segundo por plágio da música Taj Mahal (1972).
Porém, a situação terminou se resolvendo anos mais tarde com a doação de royalities
por parte de Stewart ao UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância).- "Walter Leaphart, empresário do grupo de rap Public
Enemy, que nasceu efetuando samplers da música dos outros, afirmou
que ele não ‘permite’mais que o Public Enemy faça samplers de
mais ninguém, por conta dos altíssimos custos legais" (LESSIG, 2004, p.
285).- Empresas transnacionais, ativas em quase todos os campos artísticos,
cujos principais representantes são AOL/Time Warner, Vivendi-Universal, Sony
BMG, EMI, Disney, News Corporation e Viacom (SMIERS, 2006, p. 43).- Ilustrativamente, vale lembrar que, recentemente, no caso Eldred v.
Ashcroft, a Suprema Corte dos EUA, concedeu a ampliação da proteção dos
direitos autorais de 70 para 90 anos, favorecendo os interesses patrocinados por
grupos como a Disney e estúdios de cinema norte-americanos (LEMOS, 2005, p.
12).
Sobre o autor
Márcio Ferreira Rodrigues Pereira
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica do Salvador. Mestre pela Universidade Federal da Bahia . Advogado
Como citar este texto: NBR 6023:2002 ABNT
Read more at jus.uol.com.brPEREIRA, Márcio Ferreira Rodrigues.
Direito de autor ou de empresário? Indústrias culturais e direito autoral na contemporaneidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2757, 18 jan. 2011.
Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/18293>. Acesso em: 19 jan. 2011.