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domingo, maio 04, 2008

Agente público pode responder a processo por crime de desobediência

 

1/5/2008

Agente público pode responder a processo por crime de desobediência

 

É perfeitamente possível agente público responder a processo por crime de desobediência. A conclusão é da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao negar habeas corpus para trancar ação penal contra o ex-prefeito José Everaldo de Oliveira de Poço Verde, Estado de Sergipe, acusado de negar informações sobre realização de concurso solicitadas pelo Ministério Público.

 

Segundo a acusação, quando era prefeito ele teria praticado o crime previsto no artigo 10 da lei 7347/85, por não ter respondido a ofício do promotor de justiça da comarca. O pedido foi feito durante investigações do Inquérito Civil nº 01/99, instaurado para apurar a regularidade da realização de concurso público para provimento de cargos no Poder Executivo.

 

Diante da condenação em pena mínima e da ausência de provas do envolvimento do acusado em outros processos, o procurador de justiça propôs a suspensão condicional do processo, ficando o prefeito de comparecer à Justiça, a cada três meses, durante dois anos, para informar e justificar o cumprimento das condições estabelecidas.

 

No habeas corpus dirigido ao STJ, a defesa alegou constrangimento ilegal. Em liminar pediu a suspensão da obrigatoriedade do comparecimento trimestral à sede do Juízo para cumprir o sursis processual, e no mérito, o reconhecimento da atipicidade da conduta e o conseqüente trancamento da ação penal.

 

"Incontestável a atipicidade da conduta do paciente, quer porque não se apresenta como possível agente público praticar o crime de desobediência", afirmou o advogado. "Quer porque não fora preenchido o requisito do tipo penal contido no artigo 10, lei 7437/85, uma vez que o documento solicitado fora entregue e a ação civil pública ajuizada", completou.

 

Em parecer, o Ministério Público opinou pelo não conhecimento do habeas corpus. Segundo afirmou, se o paciente aceitou a suspensão condicional do processo, oferecido pelo Ministério Público, não há interesse de agir para a propositura da ação.

 

A Quinta Turma negou o pedido de habeas corpus para trancar a ação penal, observando que o agente público pode, sim, responder pela prática de crime de desobediência. "A denúncia demonstra, de forma clara e objetiva, o fato supostamente criminoso, com todas as circunstâncias, inclusive, evidenciando a indispensabilidade, para a propositura da ação civil pública, dos dados técnicos solicitados, nos termos do que prevê o tipo penal", considerou a relatora do caso, ministra Laurita Vaz.

 

Ao negar o habeas corpus, a ministra lembrou, ainda, que o trancamento da ação penal pela via de habeas corpus é medida de exceção. "Só é admissível quando emerge dos autos, de forma inequívoca, a inocência do acusado, a atipicidade da conduta ou a extinção da punibilidade", ressaltou.

 

STJ

Agente público pode responder a processo por crime de desobediência

 

sexta-feira, abril 04, 2008

Decisão de processo administrativo não vincula julgamento do Judiciário sobre a mesma questão

 

3/4/2008

Decisão de processo administrativo não vincula julgamento do Judiciário sobre a mesma questão

 

O Poder Judiciário não está vinculado às decisões tomadas pelos órgãos da Administração Pública. O entendimento é da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Os ministros negaram recurso a um tenente do Corpo de Bombeiros acusado de suposta prática do crime de corrupção passiva. Assim, terá continuidade a ação penal movida contra o tenente, apesar de ele ter sido absolvido no processo administrativo instaurado pela Corporação Militar. A decisão da Turma foi unânime.

 

Segundo a ministra Laurita Vaz, relatora do recurso, “a teor do princípio da independência de instâncias, a absolvição do acusado (tenente) no procedimento administrativo instaurado no âmbito da Corporação Militar a que pertence não constitui razão suficiente para obstar o seguimento da ação penal, pois o Poder Judiciário não está vinculado às decisões tomadas pelos órgãos da Administração Pública”.

 

A defesa do tenente recorreu ao STJ após ter seu pedido de habeas-corpus rejeitado pelo Tribunal de Justiça Militar do Estado de Minas Gerais (TJM/MG), que manteve a ação penal contra ele. Ele foi denunciado por suposta prática do crime previsto no artigo 308 do Código Penal Militar – corrupção passiva. Segundo a denúncia, ele teria recebido R$ 500,00 em compras de carne e carvão para a corporação. O Comando Militar teria cobrado dos organizadores de uma festa valor menor do que o previsto como taxa de segurança pública para a realização do evento. De acordo com o processo, o militar apresentou nota fiscal e comprovante da doação dos valores para a corporação.

 

No STJ, a defesa do militar reiterou o pedido de trancamento da ação penal. O advogado alegou inépcia da denúncia (não atende às exigências legais), pois, segundo ele, a peça processual não descreve o fato criminoso e suas circunstâncias. Também afirmou inexistir justa causa para a ação penal, pois o tenente não recebeu vantagem indevida, como alega a denúncia. A defesa ressaltou, ainda, não ter havido dolo (intenção de praticar) do tenente ao receber os valores destinados à corporação e destacou a absolvição dele no processo administrativo disciplinar realizado pelo Comando Geral do Corpo de Bombeiros.

 

Para a ministra Laurita Vaz, a denúncia não é inepta, pois “atende perfeitamente às exigências do artigo 77 do Código de Processo Penal Militar, permitindo ao paciente ter clara ciência da conduta ilícita que lhe é imputada, garantindo-lhe o livre exercício do contraditório e da ampla defesa. Não há falar, assim, em inépcia da peça acusatória”.

 

A alegação de falta de justa causa também foi rejeitada pela relatora. “Os fatos narrados na denúncia levam a crer que, possivelmente, a cobrança a menor da Taxa de Segurança Pública fora realizada para que o promotor do evento pagasse determinada quantia em dinheiro para subsidiar um churrasco na Corporação. Aí é que reside a circunstância de ser ‘indevida’ a vantagem auferida, ainda que não tenha sido em proveito próprio, como afirma o recorrente”.

 

Segundo a relatora, “pouco importa o fato de, posteriormente, ter sido cobrado o restante do valor da Taxa de Segurança Pública, ou de ter-se formalizado, por meio de termo de doação, o recebimento da vantagem. Com efeito, o crime de corrupção passiva é formal, consumando-se no instante em que o funcionário recebe a vantagem ou aceita a promessa de sua entrega”.

 

Em seu voto, a ministra Laurita Vaz rejeitou, ainda, a alegação de ausência de dolo por parte do acusado. “A aferição do dolo, por demandar ampla dilação probatória, não está salvaguardada no estreito âmbito de atuação do habeas-corpus”, pois exige análise de provas, o que não é permitido nesse tipo de processo.

 

STJ

Decisão de processo administrativo não vincula julgamento do Judiciário sobre a mesma questão

 

 

terça-feira, março 11, 2008

Jus Navigandi - Doutrina - A expressão "crime de outrem" no peculato culposo

 


A expressão "crime de outrem" no peculato culposo

Texto extraído do Jus Navigandi
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10855


José Osterno Campos de Araújo
Procurador Regional da República da 1ª Região. Mestre em Direito. Professor de Direito Penal do Instituto de Educação Superior de Brasília (IESB)


            É fora de dúvida que o crime culposo não admite a figura criminosa tentada.

            Com efeito, referidas categorias jurídicas se afiguram incompatíveis: no crime culposo, tem-se resultado, sem vontade (a ele dirigida), ao passo que, na figura tentada de crime, tem-se vontade, sem resultado.

            Impossível, pois, sem ofensa à lógica, que alguém ''queira'' (crime tentado) e, ao mesmo tempo, ''não queira'' (crime culposo) algo.

            Outrossim, não merece reparo a posição de doutrina uníssona que entende, com razão, que na expressão "crime de outrem", presente na redação típica do peculato culposo (artigo 312, parágrafo 2º, do Código Penal – CP), somente se amoldam crimes que tenham por objeto material "dinheiro, valor, ou qualquer outro bem móvel, público ou particular", aos quais alude o caput do artigo 312 do CP.

            Neste passo, se Rita, funcionária pública, por negligência, deixa aberta, ao final do expediente, janela de sua repartição, através da qual Rômulo adentra o recinto e subtrai 1 (um) computador; ou se, no mesmo contexto fático, ao invés de subtrair o computador, Rômulo estupra Manuela, que, após a saída de todos, permanecera na repartição, para pôr em dia o serviço; qual, em cada caso, a responsabilidade penal de Rita?

            Na primeira hipótese, responderá a servidora relapsa pelo delito de peculato culposo, não se lhe podendo impingir, na segunda hipótese, qualquer responsabilidade penal, seja pelo fato de o estupro não apresentar objeto material encartável no rol do artigo 312, caput, do CP; seja, ainda, por não se afigurar previsível (previsibilidade é diferente de possibilidade) a ocorrência do havido estupro, na situação delineada; seja, por fim, em face da inexistência de previsão legal da conduta como crime culposo (artigo 18, parágrafo único, do CP).

            Pertinente, ademais, ao peculato culposo, a causa extintiva da punibilidade prevista no parágrafo 3º do artigo 312 do CP, consistente na reparação do dano, precedentemente à decisão irrecorrível.

            2.Até aqui, palmilhou-se a trilha da doutrina prevalente. Nada obstante, o seguimento da empreitada esquadrinhatória da expressão "crime de outrem", no peculato culposo, fará exsurgir alguma divergência.

            Por primeiro, com Janaina Conceição Paschoal, afasta-se, nesta seara, a nomenclatura ''tentativa de crime'', para se adotar a de ''crime tentado''.

            É que as figuras dos incisos I e II do artigo 14 do CP patenteiam verdadeiras formas de manifestação da atividade criminosa - ou do fato penal, na dicção de Roxin [01] -, ambas, em realidade, crimes. Uma na modalidade consumada (inciso I) e outra na modalidade tentada (inciso II), mas, repise-se, crimes em essência as duas.

            É o quanto se colhe na dicção de Janaina Conceição Paschoal: "Deve-se tomar cuidado para não cair no erro de falar em tentativa de crime (tentativa de estupro, tentativa de homicídio, tentativa de roubo etc.), pois, na verdade, o que se tem é um crime tentado (estupro tentado, homicídio tentado, roubo tentado etc.). A tentativa já é um crime" [02] (grifei).

            3.E o que é, afinal, "crime de outrem" na redação típica do peculato culposo?

            Para a doutrina majoritária, tão-somente crimes que, sobre deterem objeto material idêntico ao do peculato, apresentem-se, exclusivamente, na forma consumada.

            É o pensar de Capez: "Obviamente o funcionário público somente poderá responder por essa modalidade culposa se o crime doloso praticado por terceiro consumar-se. É que não se admite tentativa de crime culposo, de forma que, se o crime doloso ficar na fase da tentativa, não há falar na configuração do crime em estudo. O terceiro, contudo, deverá responder pelo crime praticado na forma tentada" [03]; e Damásio: "Consuma-se o delito no momento em que outro crime atinge o seu momento consumativo. Culposa a modalidade, não admite tentativa" [04].

            Referenciadas pontuações doutrinárias, inobstante autorizadas, não colhem aqui adesão.

            Admite-se, sim, neste labor, a possibilidade de subsunção da figura criminosa tentada na intelecção da expressão "crime de outrem" contida na redação do parágrafo 2º do artigo 312 do CP.

            E, com isso, não se perfaz qualquer afronta à afirmação primeira deste texto, no sentido de se afigurar inadmissível a figura tentada no crime culposo. Com efeito, o que não se admite é a modalidade tentada no crime do funcionário (intraneus), nada obstando, entrementes, que o crime do extraneus se apresente sob a forma tentada, já que o parágrafo 2º do artigo 312 do CP alude singelamente a "crime de outrem", fato conducente a se ter por inexistente pretensa limitação à figura criminosa consumada, imposta ao crime do terceiro, mesmo porque crime consumado e crime tentado são, ambos, espécies de crime.

            4.A dificuldade que dita interpretação impõe consiste na impossibilidade de o funcionário, na hipótese de crime tentado do terceiro, poder livrar-se da pena - pela sua extinção -, com a reparação do dano, o qual, em verdade, inexiste.

            Mas dito empeço se faz presente também no cotejo dos artigos 1º, inciso I, e 2º, inciso I, da Lei 8.137/90, quando, no primeiro, crime de dano, enseja-se o pagamento, a título de reparação, com consectária extinção da punibilidade, e, no segundo, crime formal, no qual a inocorrência do resultado ''supressão ou omissão de tributo'' impossibilita a reparação pela paga da exação sonegada, com afastamento, pois, da incidência da extinção da punibilidade.

            5.Seria, pois, o caso de, pela via legislativa, se proceder à modificação da redação do parágrafo 2º do artigo 312 do CP, para nela constar: "§ 2º. Se o funcionário concorre culposamente para a consumação do crime de outrem"?

            Com a redação atual, o "crime de outrem", no peculato culposo, tanto pode ser consumado, quanto tentado.


Notas

            01ROXIN, Claus et alli. Introdução ao direito Penal e ao Direito Processual Penal. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 26.

            02PASCHOAL, Janaina Conceição. Direito Penal, Parte Geral. Baruerí: Manole, 2003, p. 67.

            03CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, v. 3, Parte Especial. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 399.

            04JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, 4º volume, Parte Especial. 25. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 133.


Sobre o autor


José Osterno Campos de Araújo

E-mail: Entre em contato


Sobre o texto:
Texto inserido no Jus Navigandi nº1659 (16.1.2008)
Elaborado em 12.2007.


Informações bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
ARAÚJO, José Osterno Campos de. A expressão "crime de outrem" no peculato culposo . Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1659, 16 jan. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10855>. Acesso em: 11 mar. 2008.


Jus Navigandi - Doutrina - A expressão "crime de outrem" no peculato culposo

 

Jus Navigandi - Doutrina - Primeiro Comando da Corrupção

 


Primeiro Comando da Corrupção

Texto extraído do Jus Navigandi
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9041


José Reinaldo Guimarães Carneiro
promotor de Justiça do Estado de São Paulo, membro do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (GAECO), mestre em Direito Processual Penal pela PUC/SP
Rodrigo Carneiro Gomes
delegado de Polícia Federal em Brasília (DF), lotado na Diretoria de Combate ao Crime Organizado, professor da Academia Nacional de Polícia, pós-graduado em Processo Civil, Segurança Pública e Defesa Social


            A Transparência Internacional divulgou, há poucos dias, que o Brasil ocupa a 23ª posição no Índice de Pagamentos de Propina (Bribers Payers Index - BPI), ou seja, a oitava pior posição, no "ranking" com 30 países, além de ter caído nove posições no "ranking" do Índice de Competitividade Global do Fórum Econômico Mundial e classificado na lista negra da pirataria elaborada pela União Européia. Nesses tempos de valores invertidos, há autoridades capazes de identificar a mazela brasileira: um magistrado da Vara Criminal de Goiânia determinou a soltura, no dia 05.10.06, de um rapaz de origem humilde acusado de furto por entender injusto e pouco razoável mantê-lo preso enquanto "políticos e administradores públicos desviam fortunas dos cofres públicos e sequer passam diante de uma delegacia", conforme noticiado pela imprensa escrita em 07.10.06.

            Também, nesse diapasão, São Paulo tem assistido, perplexa, às seguidas investidas do Primeiro Comando da Capital. Instalou-se na região metropolitana e em cidades do interior paulista uma espécie de guerra civil, de números alarmantes: dezenas de mortos, inclusive com assassinatos de agentes da segurança pública; atentados contra postos policiais e alvos civis como prédios públicos, agências bancárias, supermercados e incêndios em veículos de transportes coletivos, com reflexos que já são sentidos em outros Estados.

            Desde 2001, a facção comandou mais de cem rebeliões em presídios paulistas, em uma demonstração evidente de que o terror das ruas seria apenas uma questão de tempo. A barbárie de maio evidenciou o colapso completo da segurança pública brasileira. Não foram eventos isolados. A coordenação ditada pelos criminosos evidenciou atentados simultâneos em São Paulo, Mato Grosso do Sul, Paraná e Minas Gerais, que culminaram, inclusive, com o seqüestro de uma equipe de reportagem de televisão para instituir moeda de troca voltada para transmissão, em rede nacional, de uma mensagem forçada de terror.

            Ressalvadas reações pontuais, o que se viu foi a politização dos discursos no encaminhamento da crise. A facção criminosa vem sendo tratada como verdadeira anomalia do sistema. Sustenta-se que teria sido fruto de treinamento de guerrilha quando do contato de seus integrantes com presos políticos. Ou que teria sido resultado da inteligência privilegiada de um só de seus integrantes, apontado como senhor absoluto de estratégia ímpar e conhecimento literário privilegiado. Dizem alguns que a crise seria resultado da culpa do Estado de São Paulo, incapaz de estabelecer e gerir, sozinho, um plano competente de segurança pública. Para outros, seria culpa da União, desinteressada no aprimoramento legislativo das execuções penais. Na verdade, a facção, que deixaria surpresas as democracias suíça e belga, é fruto natural da corrupção que domina parte das instituições brasileiras.

            É verdade. O fato precisa ser admitido. Não há nada de muito diferente nos criminosos dos presídios, que já não seja fato consolidado em segmentos do funcionalismo do Estado. O país da facção é o mesmo que levou recentemente ao Supremo Tribunal Federal, por denúncia de corrupção, nada menos do que quarenta políticos contra os quais, muito pouco tempo antes, nada pesava de suspeito. Aliás, muito pelo contrário, tratava-se, na maioria, de pessoas de prestígio nacional.

            Na primeira lista de parlamentares envolvidos na Operação Sanguessuga foram destacados sessenta e dois congressistas. O número impressiona? Basta lembrar que na Operação Mãos Limpas, na Itália, iniciada por uma denúncia de pagamento de propina para renovação de contrato de limpeza num hospital público, foram presos cento e nove prefeitos, condenados dois juízes e um deputado. Há diferenças entre o nicho de corrupção brasileiro e o italiano. Evidenciada a proximidade dos números, lá, na Itália, a centena de corruptos foi presa. Não se tergiversou. No Brasil, ao contrário, o foro privilegiado é um modelo processual penal arcaico. Nele são contemplados mais de vinte e quatro recursos! Como superá-los? Ninguém se esqueceu que, em homenagem à impunidade, Paul Castellano, conhecido mafioso, já dizia que não queria mais pistoleiros. Preferia antes, e com maior eficiência de resultados, deputados e senadores. Aqui reside a lógica que precisa ser invertida.

            O Brasil da facção é o mesmo que, em seguidas operações da Polícia Federal, viabilizou a prisão não só de integrantes da própria polícia e do pretenso intocável empresariado brasileiro, mas, também, de servidores públicos e agentes políticos das três esferas de Poderes, sob as mais variadas acusações, entre elas as de formação de quadrilha, contrabando, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, tráfico de influência e advocacia administrativa.

            No Brasil da facção, há evidente subordinação indevida dos órgãos de fiscalização ao próprio órgão ou Poder fiscalizado. Basta conferir os exemplos da própria Polícia Federal, da Secretaria da Receita Federal - SRF, da Controladoria-Geral da União - CGU e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras - Coaf.

            O Brasil da facção é o mesmo que contabilizou, recentemente, duas surpreendentes operações em dois Estados distintos, Espírito Santo e Rondônia, para desmascarar quadrilhas organizadas com atuação concatenada dentro dos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo e, também, no Ministério Público. Troca de favores escusos, influência direta e ilegítima no curso de investigações policiais, apoio à sonegação fiscal, incentivo à propina, comprometendo a arrecadação tributária, são fatos atuais.

            O país da facção é aquele que exibe políticos corruptos na propaganda eleitoral gratuita, esquecendo-se, em nome de uma exacerbada presunção de inocência, das acusações graves que pesam contra eles em investigações ou ações penais em pleno andamento. São, todos, exemplos tristes da derrocada nacional. O Primeiro Comando da Capital, que deixaria comprometido o sistema penitenciário americano ou que abalaria os alicerces da política criminal da França ou da Inglaterra, é, aqui no Brasil, decorrência direta da falência do sistema penitenciário, desvalorização do agente público e investimento deficitário em saúde, educação, moradia, emprego e segurança pública desde décadas passadas. É, na mesma proporção, fruto da alimentação da corrupção que envolve, desde funcionários públicos ocupantes de cargos singelos, até presidentes de Poderes do Estado.

            A corrupção é o elemento essencial para a sobrevida do crime organizado. Sem ela, o Estado enxerga a organização criminosa e tem força para destruí-la imediatamente. O incentivo à corrupção assegura a proteção aos negócios escusos, à fiscalização estatal deficiente, aumentando seu grau de sigilo, compartimentação e segurança. Se a pretensão é, de fato, enfrentar os criminosos da facção – e a providência é para lá de urgente – o enfrentamento não virá com a utilização da parcela comprometida das entidades públicas. Certamente não será assim. É ridículo supor diferente. O enfrentamento deverá ser feito com compartilhamento real de informações. A solução não será ditada por um único organismo público. Muito pelo contrário. Virá determinada na somatória de esforços legítimos de variados segmentos. Será encontrada no esforço conjunto de pessoas e segmentos sociais mais preocupados com o bem-estar da população e menos com a administração de vaidades e arrogâncias pessoais, bastante conhecidas da opinião pública. Sobretudo será resultante da constatação e punição do grave problema decorrente do descrédito das instituições.

            O Brasil tem que acordar de vez: para derrotar o autodenominado Primeiro Comando da Capital, o pressuposto necessário é derrotar, também, outra facção mais antiga e mais entranhada na vida brasileira, o Primeiro Comando da Corrupção, de estrutura horizontal, com falsos dirigentes dissimulados e infiltrados em vários estratos da Administração Pública. Pelo voto consciente, expressão do exercício da cidadania, muitas das portas e janelas da corrupção poderão ser fechadas e, assim, o Brasil acordará do estado de letargia que vivenciamos atualmente.


Sobre os autores


José Reinaldo Guimarães Carneiro

E-mail: Entre em contato


Rodrigo Carneiro Gomes foi assessor de Ministro do Superior Tribunal de Justiça.

E-mail: Entre em contato


Sobre o texto:
Texto inserido no Jus Navigandi nº1200 (14.10.2006)
Elaborado em 10.2006.


Informações bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
CARNEIRO, José Reinaldo Guimarães; GOMES, Rodrigo Carneiro. Primeiro Comando da Corrupção . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1200, 14 out. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9041>. Acesso em: 11 mar. 2008.


Jus Navigandi - Doutrina - Primeiro Comando da Corrupção

 

Jus Navigandi - Doutrina - A bilateralidade com tipicidade diversa nos crimes de corrupção

 


A bilateralidade com tipicidade diversa nos crimes de corrupção

Texto extraído do Jus Navigandi
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5194


Dílio Procópio Drummond de Alvarenga
professor aposentado de Direito Penal na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG)


             A bilateralidade de condutas puníveis pode ocorrer em inúmeros delitos, desde que haja dualilidade ou multiplicidade de sujeitos ativos, que agem, convergentemente, como na quadrilha ou bando (art. 288 do CP), bem como, divergentementente, como na rixa (art. l37), mas, até aqui, incorrendo todos no mesmo tipo legal (crimes bilaterais de tipicidade idêntica). No entanto, em alguns casos, ocorre bilateralidade, igualmente, quando cada agente merece enquadramento em tipos legais diversos (crimes bilaterais de tipicidade diversa), fato este decorrente da exceção pluralista à teoria monista adotada, entre nós, em matéria de concurso de pessoas no delito. É o que ocorre no aborto (arts. 124 e 126), na bigamia (arts. 235, caput, e 235, § lº), no contrabando ou descaminho e na facilitação desse delito (arts.334 e 318), na fuga de preso ou interno e sua facilitação (arts. 352 e 35l), como também, na corrupção (arts. 317 e 333).

             2. Interessa-me, aqui, a bilateralidade que pode ocorrer nos crimes de corrupção, isto é, quando os agentes, ao praticarem condutas recíprocas, devam ser enquadrados nas penas dos arts. 333 (corrupção ativa) e 317 (corrupção passiva), ambos do CP. Frise-se, desde já, que o estudo dos tipos penais indica que tal bilateralidade, não sendo obrigatória, é meramente ocasional, consoante os verbos empregados para exprimir as ações nucleares dos delitos. Na corrupção ativa, os verbos empregados são oferecer e prometer vantagem indevida...; na corrupção passiva são solicitar ou receber tal vantagem, bem assim, aceitar promessa dessa vantagem prometida. Observe-se que o verbo oferecer casa-se perfeitamente com receber. Isso também ocorre entre os verbos prometer e aceitar. Por fim, note-se que o verbo solicitar também casa-se perfeitamente com prometer. Em todas essas hipóteses, haverá bilateralidade com tipicidade diversa, desde e quando as condutas acontecerem concorrentemente.

             3.Por outro lado, cumpre esclarecer que se o funcionário solicitar e, depois, receber a vantagem indevida não estará praticando dois delitos em concurso material. Trata-se, no caso, de um tipo complexo alternativo, pelo qual o cometimento de uma ou mais, dentre as condutas típicas, não permite afastar a unidade do crime. Além do mais, receber pode figurar como mero exaurimento (consumação material) do delito de solicitar ou de aceitar promessa de vantagem.

             4.Chega-se, agora, a uma importante constatação. Trata-se da falta de previsão da ação de dar, entre as condutas típicas do crime de corrupção ativa. Tal falta, diga-se de passagem, não ocorreu no art. 299 do Código Eleitoral, onde o verbo dar encontra-se previsto, embora numa redação confusa e quase incompreensível, misturando, no mesmo dispositivo as corrupções eleitorais ativa e passiva, sem nenhuma técnica legislativa.

             Assim sendo, qual será a conseqüência jurídica de o particular dar vantagem indevida a funcionário público?

             Para responder à indagação, cumpre-me distinguir as seguintes situações:

             a) o particular dá a vantagem ao funcionário a quem, antes, a havia oferecido ou prometido. Solução: dar é apenas componente da fase de exaurimento do delito (que poderá ensejar, apenas, a última ocasião de participação criminal);

             b) o particular dá a vantagem que, antes, fora solicitada pelo funcionário. Solução: dar é ação atípica, ou seja, não prevista na lei como crime.

             6. . Qual terá sido a razão da falta de previsão legal da ação de dar, tornando-a atípica?

             Duas são as respostas possíveis e imagináveis: - omissão imperdoável da lei, causadora de uma lacuna que cumpre ser suprida mediante alteração legislativa; ou, segundo prefiro sustentar, - consciente e sábia opção da lei, vislumbrando a aproximação dessa modalidade de conduta do funcionário, ao praticar a corrupção passiva, ao crime de concussão (art. 3l6 do CP), pelo que o particular, longe de considerar-se sujeito ativo da corrupção ativa, deve figurar como sujeito passivo daquela citada infração. Dar a vantagem solicitada (que quase configura uma coação moral), assemelha-se, quanto à motivação, a uma ação impelida pela inexigibilidade de outra conduta - que excluiria a culpabilidade do agente, caso tivesse sido tipificado o comportamento.

             7. Feitas essas indagações e observações, cumpre-me apontar as hipóteses de bilateralidade e falta de bilateralidade com tipicidade diversa nos crimes de corrupção.

             Para essa tarefa, ofereço o seguinte quadro sinótico:

             Particular

             Iniciativa do particular

             Iniciativa do funcionário

             Funcionário

             Corrupção ativa

             Corrupção passiva

a) oferece

             x

             -

não aceita

             x

             -

b) oferece e dá

             x

             -

aceita e recebe

             x

             x

c) promete

             x

             -

não aceita

             x

             -

d) promete

             x

             -

aceita

             x

             x

e) promete e dá

             x

             -

aceita e recebe

             x

             x

f) não promete

             -

             x

solicita

             -

             x

g) promete

             -

             x

solicita

             - (?)

             x

h)promete e dá

             -

             x

solicita e recebe

             - (?)

             x

i) não dá

             -

             x

solicita

             -

             x

j)dá

             -

             x

solicita e recebe

             -

             x

             8. Em síntese, formulo as seguintes conclusões genéricas e específicas a respeito da bilateralidade ou ausência de bilateralidade nos crimes de corrupção:

             1ª - a ação de dar ou é atípica (letra j) ou é integrante da fase de exaurimento da corrupção ativa, nas modalidades de oferecimento ou promessa (letras b e e);

             2ª - prometer, além de prometer e dar, em face da impunibilidade da ação que seria mais grave (dar) não são típicas na corrupção ativa, quando a iniciativa do fato pertencer ao funcionário, que age, solicitando a vantagem (letras g e h);

             3ª - receber a vantagem, após tê-la solicitado ou aceitado a promessa de dá-la, do particular, compõe, apenas, o momento de exaurimento da corrupção passiva (letras b, e, h e j);

             4ª - em matéria de corrupção, ativa e passiva, só há bilateralidade com tipicidade diversa, nas situações previstas nas letras b, d e e;

             5ª - assim, não há bilateralidade com tipicidade diversa, nas hipóteses descritas nas letras a, c, f, g, h, i e j.


Sobre o autor


Dílio Procópio Drummond de Alvarenga

E-mail: Entre em contato


Sobre o texto:
Texto inserido no Jus Navigandi nº305 (8.5.2004)
Elaborado em 03.2004.


Informações bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
ALVARENGA, Dílio Procópio Drummond de. A bilateralidade com tipicidade diversa nos crimes de corrupção . Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 305, 8 maio 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5194>. Acesso em: 11 mar. 2008.


Jus Navigandi - Doutrina - A bilateralidade com tipicidade diversa nos crimes de corrupção

 

Jus Navigandi - Doutrina - Diferenças existentes entre o crime de concussão e corrupção praticado por militar do estado em razão da função

 


Diferenças existentes entre o crime de concussão e corrupção praticado por militar do estado em razão da função

Texto extraído do Jus Navigandi
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7668


Honazi de Paula Farias
bacharelando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP), primeiro-tenente da Polícia Militar de São Paulo


Sumário: 1. Da Concussão; 2. Da Corrupção Passiva; 3. Consumação dos Crimes de Concussão e Corrupção Passiva; 4. Da Regularidade da Prisão em flagrante; 5. Conclusão e 6. Bibliografia Consultada.


1. Da Concussão.

            Os tipos concussão e corrupção passiva são capitulados nos arts. 305 e 308 do Código Penal Militar, nos Capítulos III e IV, respectivamente, do Título VII – destinado a tratar dos Crimes Contra a Administração Militar.

            Evidencia-se o crime de concussão pela exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, de vantagem indevida, por parte do funcionário público, na espécie, o militar do Estado.

            A conduta típica é exigir, impor como obrigação, ordenar, reclamar vantagem indevida, aproveitando-se o agente do metus publicae potestatis, ou seja, do temor de represálias a que fica constrangida a vítima.

            Nessa esteira, comete o delito de concussão aquele que, em razão da função de policial militar, exige vantagem indevida para relaxar prisão de indivíduos implicados em porte de cigarros de maconha [01]. Da mesma forma comete o delito de concussão o policial que exige dinheiro de preso para libertá-lo [02].

            Na lição do saudoso professor Julio Fabbrini Mirabete, não é necessário que se faça a promessa de um mal determinado; basta o temor genérico que a autoridade inspira, que influa na manifestação volitiva do sujeito passivo [03].

            Assim sendo, não integraliza o tipo e não representa concussão a insinuação sutil, a sugestão, a proposta maliciosa para que a vantagem seja proporcionada, conforme já decidiu o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo [04].

            Destarte, não é necessário que haja uma exigência sob ameaça explícita de represálias (imediatas ou futuras). Também não se faz mister a promessa de infligir mal determinado [05].


2. Da Corrupção Passiva.

            Por outro lado, cometerá corrupção passiva o militar do Estado que recebe, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função, ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceita promessa de tal vantagem.

            O tipo objetivo prevê duas condutas típicas: receber vantagem indevida ratione offici, ou aceitar promessa de tal vantagem.

            Nesse ponto, diferencia-se do Código Penal comum, conquanto este prevê além das duas condutas típicas suso elencadas a de solicitar, consistente no manifesto desejo de receber vantagem indevida, por intermédio de pedido, induzimento. Nesta hipótese, a corrupção parte do intraneus que toma a iniciativa da mercancia, requerendo que a vantagem lhe seja concedida ou a promessa lhe seja feita [06].

            Com isso, dessume-se que se o militar do Estado v.g. solicitar vantagem indevida para liberar um veículo apreendido antes de satisfeitas as exigências legais, não estará incorrendo no crime de concussão, capitulado no art. 305 do CPM, nem tão pouco no de corrupção passiva, capitulado no art. 308 do mesmo codex, mas sim no delito previsto no art. 317 do Código Penal comum, competindo à Justiça comum, processá-lo e julgá-lo pelo crime de corrupção passiva própria, ante a ausência de previsão desta conduta no Código castrense.

            No mesmo sentido se manifestou o Superior Tribunal de Justiça no Conflito de Competência n° 18.555, publicado no DJU, de 23.06.1997, cujo aresto é da lavra do eminente Min. Fernando Gonçalves, moldado nos seguintes termos:

            "Competência – Militar – Corrupção Passiva – Art. 317, do CP – Compete à Justiça Comum processar e julgar crime de corrupção passiva por militar, ante a ausência de previsão desta conduta no CPM".

            Na espécie, um Segundo Sargento de uma Força Armada, no Estado do Mato Grosso do Sul, havia solicitado cento e cinqüenta reais, para dispensar um conscrito do serviço militar obrigatório, restando indiciado pela prática do crime de concussão, previsto no art. 305 do CPM.

            Ocorre que, no voto do insigne Ministro do STJ, ficou consignado que o núcleo do tipo do crime de concussão é o verbo exigir, não configurado na hipótese, porquanto no seu entender houve tão-somente uma solicitação, subsumindo-se o fato à conduta preceituada no art. 317 do CP, qual seja, corrupção passiva.

            Noutro turno, decidiu o Superior Tribunal Militar, no Recurso Criminal n° 1986.01.005726-4, cuja decisão foi publica no DJU, de 09.09.1986, vol.: 00786-01, que embora o atual CPM, no art. 308 tenha afastado a incriminação solicitar que era contemplada no art. 232 do CPM de 1944, não ocorreu abolitio criminis, posto que subsiste a incriminação na órbita do ilícito penal comum, ex vi do art. 317, do Código Penal.

            Na verdade, para que se configure o crime de corrupção passiva do Código Penal Militar é necessário que o militar receba ou aceite promessa de vantagem indevida, a fim de mercadejar com a sua função, comprometendo, desta forma, o funcionamento normal da Administração Militar, ferindo princípios morais e éticos de probidade e de moralidade.

            Assim, uma simples troca de serviço sem autorização superior, porém com o recebimento de dinheiro como pagamento para efetivação da troca, configura o ilícito penal militar capitulado no art. 308 do CPM.

            Cabe ressaltar, por oportuno, que alguns doutrinadores, como Nelson Hungria, conferem ao termo vantagem conceito restrito, limitando-o somente ao de natureza patrimonial; outros, porém, como Heleno Cláudio Fragoso, seguido por Mirabete e Damásio, através de uma interpretação mais ampla, consideram relevante qualquer espécie de retribuição, ainda que não de natureza econômica, como por exemplo, a sentimental, sexual etc.

            Não se desconsideram na doutrina pátria aqueles que entendem que o art. 308 do CPM deve ser interpretado com certa parcimônia, de modo que não se subsume como criminoso o recebimento de meras dádivas e outras vantagens provenientes de amizade, gratidão, cortesia e motivos semelhantes, como, por exemplo, quando militares do Estado efetuam suas refeições em lanchonetes ou restaurantes sem que lhes seja cobrado o efetivo pagamento pelos gêneros consumidos.

            Outrossim, não há que se falar em ato de improbidade administrativa, pois a severidade das sanções previstas no art. 37 § 6º da Constituição Federal e no art. 12 da Lei 8.429/92, está a demonstrar que o objetivo foi o de punir infrações que apresentem conseqüências danosas para o patrimônio público, ou proporcionem benefícios indevidos para o agente público ou para terceiros, porquanto a aplicação das medidas previstas na lei exige observância do princípio da razoabilidade, sob o seu aspecto de proporcionalidade entre os meios e fins, na abalizada lição da professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro [07].

            Quando muito, pode haver na conduta dos milicianos a configuração de transgressão disciplinar.


3. Da Consumação dos Crimes de Concussão e Corrupção Passiva.

            Majoritariamente, a doutrina e a jurisprudência entendem que a concussão é um delito formal ou de consumação antecipada, haja vista que se consuma com a simples exigência da vantagem indevida, ocorrendo o mero exaurimento do crime se sobrevém a percepção de tal vantagem.

            O mesmo pode-se dizer acerca da consumação da corrupção passiva, uma vez que este também é considerado crime formal, que independe da ocorrência do resultado pretendido pelo agente, consumando-se com o recebimento ou aceitação da promessa da vantagem indevida, para configuração do art. 308 do CPM, ou ainda, pela solicitação da referida vantagem para caracterização do tipo previsto no art. 317 do CP.


4. Da Regularidade da Prisão em flagrante.

            Não se descaracteriza o crime pela preparação do flagrante quando já houve a exigência, a solicitação ou a promessa de vantagem indevida.

            Não há que confundir o flagrante preparado, que é aquele onde a polícia ou um agente provocador induz completamente um terceiro a praticar uma ação delituosa, com o flagrante esperado, que é aquele onde a atividade policial é apenas de alerta, sem instigar o mecanismo causal da infração, frustrando a sua consumação, quer porque recebeu informações a respeito do provável cometimento do crime, quer porque exercia vigilância sobre o delinqüente [08].

            Neste diapasão, pode-se concluir pela legalidade da prisão em flagrante, quando a intervenção policial ocorre apenas na fase de pagamento da vantagem indevida, já consumado o delito pela simples exigência daquela, sendo inaplicável à hipótese a Súmula 145 do STF [09].


5. Conclusão.

            Entre concussão e corrupção passiva há de existir uma diferença ontológica expressa no sentido diverso dos verbos-núcleos "exigir" e "solicitar". Exigir implica obrigar a alguma coisa, sob certa pena. Solicitar é simples pedido. Enquanto no primeiro caso a vítima é levada pelo medo a atender a exigência, no segundo satisfaz o pedido livremente, recebendo ou não, em contrapartida, alguma vantagem.

            Todavia, essa diferença não reside na seara penal castrense, porquanto, o art. 308 do CPM não descreve, como elemento objetivo do tipo, a conduta solicitar, motivo pelo qual, em se verificando que o militar do Estado solicitou uma vantagem indevida, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função, ou antes de assumi-la, mas em razão dela, estará configurado o crime tipificado no art. 317 do Código Penal comum, devendo ser ele processado e julgado pela Justiça comum.


6. Bibliografia Consultada.

            CUNHA, Rogério Sanches. Direito penal – crimes funcionais. 1ª ed. Salvador: Juspodium, 2004.

            DELMANTO, Celso et al. Código penal comentado. 5ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

            DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 15ª e. São Paulo: Atlas, 2003.

            FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. J. Bushatsky, 1959. 4v.

            HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. Rio de Janeiro: Forense, 1944. 9v.

            JESUS, Damásio E. de. Direito penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000. 4v.

            MIRABETE, Julio Fabbrini. Código penal interpretado. São Paulo, 2000.


Notas

            01 RT 597/365.

            02 RT 512/345.

            03 In Código penal. São Paulo: Atlas, 2000. p. 1709.

            04 RT 685/307.

            05 RT 586/273.

            06 CUNHA, Rogério Sanches. Direito penal – crimes funcionais. Salvador: Edição Juspodium, 1ª ed., p. 56.

            07 In Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 15ª ed. P. 689.

            08 JCAT 75/675.

            09 RT 691/314.


Sobre o autor


Honazi de Paula Farias

E-mail: Entre em contato


Sobre o texto:
Texto inserido no Jus Navigandi nº902 (22.12.2005)
Elaborado em 11.2005.


Informações bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
FARIAS, Honazi de Paula. Diferenças existentes entre o crime de concussão e corrupção praticado por militar do estado em razão da função . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 902, 22 dez. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7668>. Acesso em: 11 mar. 2008.


Jus Navigandi - Doutrina - Diferenças existentes entre o crime de concussão e corrupção praticado por militar do estado em razão da função

 

Jus Navigandi - Doutrina - A ampliação do conceito criminal de funcionário público (Lei 9983/00)

 


A ampliação do conceito criminal de funcionário público (Lei 9983/00)

Texto extraído do Jus Navigandi
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=358


Rudson Marcos
bacharel em Direito, servidor da Coordenadoria Criminal do Ministério Público de Santa Catarina
Ana Carolina Serpa
acadêmica de Direito na Universidade do Vale do Itajaí, estagiária da Coordenadoria Criminal do Ministério Público de Santa Catarina



1 - INTRODUÇÃO

            Com a edição da Lei n.º 9.983, publicada no Diário Oficial da União de 17 de julho de 2000, que já está em vigência desde o dia 15 de outubro transato, foram modificados diversos dispositivos do Código Penal, dentre os quais, o conceito de funcionário público, para fins penais, positivado no art. 327, §1º, do Código Penal, o qual restou sensivelmente ampliado, no que respeita às hipóteses de equiparação.

            As repercussões desta ampliação do conceito de funcionário público no ordenamento jurídico-penal serão muitas. É possível antever discussões doutrinárias e pretorianas acerca de tormentosos assuntos, tais como:

            1 - Empregado de empresa privada, concessionária do serviço público de transporte coletivo, desempenhando a atividade de cobrador de passagens, ao subtrair estes valores, cometerá qual crime - peculato ou apropriação indébita ?

            2 - Empregado de empresa privada permissionária do serviço público, contratada por sociedade de economia mista, para desempenhar a atividade de manutenção das linhas de transmissões elétricas, ao desviar objetos destinados ao labor, cometerá o delito de peculato ou apropriação indébita?

            3 - Empregado de empresa privada, prestadora de atividade autorizada pelo Estado, consistente no oferecimento de serviço de táxi, ao subtrair valores em sua detenção, comete apropriação indébita ou peculato?

            Para responder às questões suscitadas, é preciso delimitar, portanto, a real abrangência do conceito de funcionário público, à luz da ampliação da equiparação operada pela novatio legis.


2 - DA REFORMA DO APARELHAMENTO ADMINISTRATIVO DO ESTADO

            A inovação legislativa em análise insere-se no contexto político da chamada Reforma do Aparelhamento Administrativo do Estado, implementada a partir da Emenda Constitucional n.º 19, de 4 de junho de 1998. Com efeito, a tendência atual das políticas governamentais referentes à Administração Pública é, inequivocamente, a sua descentralização político-administrativa, pela qual o Estado vem, progressivamente, transferindo para entidades privadas inúmeras incumbências que, até então, eram desempenhadas diretamente pelo Poder Público.

            O propósito do legislador em ampliar a equiparação do conceito criminal de funcionário público é, por certo, abarcar o conjunto de pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, que mantenham vínculos com o Estado, decorrentes da execução de atividades típicas da Administração Pública.


3 - DO CARÁTER GERAL DA NORMA PENAL QUE CONCEITUA FUNCIONÁRIO PÚBLICO (art. 327 do CP)

            Como é cediço, a localização topográfica das normas penais dentro do Estatuto Repressivo é irrelevante para a classificação quanto ao seu caráter geral ou especial. Assim, há normas penais de caráter geral não só na Parte Geral do Código Penal, mas também na sua Parte Especial, bem como na legislação penal especial. Exemplo típico de norma penal de caráter geral localizada na parte especial do Código Penal é, exatamente o seu artigo 327, que ostentando inequívoco caráter conceitual, apresenta-se como norma de natureza geral (art. 12 CP).

            Assim, a nova equiparação penal de funcionário público servirá não só para identificar a especial condição de agente ativo (intraneus) dos crimes contra a administração pública, tipificados no título XI do Código Penal, como também em toda a legislação penal especial.


4 - DA ALTERAÇÃO LEGISLATIVA EFETUADA NO § 1º DO ARTIGO 327, DO CÓDIGO PENAL

            A nova redação dada ao parágrafo primeiro do artigo 327 do Código Penal, alterado pela Lei n.º 9.983/2000, assim preceitua:

"Art. 327. (...)

§1º Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública." (grifo não original).

            A redação anterior do Código Penal disciplinava a equiparação ao funcionário público, para fins penais, da seguinte forma:

"Art. 327. (...)

§ 1º. Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal."

            Observa-se que, através da alteração legal suscitada, ocorreu uma extensão do termo funcionário público, passando a ser considerado como tal, também, aquele que "trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública".

            Há elementares normativas cuja significação reclama esclarecimento. É necessário identificar e definir o que é atividade típica da Administração Pública, assim como as espécies ou formas de prestação de serviços que a Administração Pública pode controlar ou realizar mediante convênios.


5 - DO CONCEITO JURÍDICO DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

            Apesar das diferentes conceituações sobre Administração Pública, os doutrinadores, contudo, admitem haver uma indissociável relação entre Administração Pública e a satisfação dos interesses da coletividade.

            Hely Lopes Meirelles, após trazer à lume a classificação de Administração Pública em sentido formal e material, conceitua-a como sendo "todo aparelhamento do Estado preordenado à realização de seus serviços, visando à satisfação das necessidades coletivas".(1)

            Maria Sylvia Zanella Di Pietro admite haver dois sentidos orientadores para a conceituação da Administração Pública: "Em sentido objetivo, material ou funcional, a administração pública pode ser definida como a atividade concreta e imediata que o Estado desenvolve, sob regime jurídico de direito público, para a consecução dos interesses coletivos. Em sentido subjetivo, formal ou orgânico, pode-se definir Administração Pública, como sendo o conjunto de órgãos e de pessoas jurídicas aos quais a lei atribui o exercício da função administrativa do Estado".(2)

            O conceito de Administração Pública está indissociavelmente ligado a idéia de atividade desenvolvida pelo Estado, através de atos executórios concretos, para a consecução direta, ininterrupta e imediata dos interesses públicos. Trata-se, pois, da função administrativa de competência, predominantemente, do Poder Executivo.

            Entretanto, a Administração Pública compreende não só o Poder Executivo, como também a complexa máquina estatal, através da qual o Estado visa a realização dos seus fins. Assim sendo, também integram a chamada Administração Pública não só Poder Executivo, mas também os Poderes Legislativo e Judiciário.


6 - DA ATIVIDADE TÍPICA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

            As diversas espécies de atividades típicas desempenhadas pela Administração Pública não possuem classificação unânime na doutrina especializada. Desta forma, torna-se necessária a fixação de critérios seguros, a fim de concluirmos, com maior precisão, quais as atividades desempenhadas pela Administração Pública, direta ou indiretamente, que se amoldam ao conceito jurídico de atividade típica da mesma.

            Celso Antônio Bandeira de Mello elenca dois critérios identificadores do serviço público, que se prestam para caracterizar uma atividade como sendo típica da Administração pública:

1 - O Substrato Material - Consiste na prestação de utilidade ou comodidade fruível diretamente pelos administrados;

2 - O Traço Formal - Consiste em um específico regime de direito público, isto é, numa unidade normativa, que é indispensável, pois dá-lhe justamente caráter de noção jurídica.(3)

            Neste sentido, também é a lição de Odete Medauar, que fixa os seguintes critérios para identificar o serviço público:

1 - Vínculo Orgânico com a Administração Pública - Revela-se:

a) na presunção de serviço público, quando esta atividade que se traduz é exercida pelo Poder Público;

b) quando houver relação de dependência entre a Administração Pública e a atividade prestada, objeto do serviço público, na qual aquela exerce controle permanente sobre o executor desta. A Administração Pública é responsável pela atividade.

2 - Regime Jurídico - O Outro critério caracterizador do serviço público e assim, identificando a atividade típica da Administração Pública, é o regime jurídico em que esta atividade está submetida, posto que deve ser total ou parcialmente submetida ao Direito Administrativo, mesmo que realizado por particulares. Portanto, não há atividade típica da Administração Pública quando o regime jurídico submetido é, exclusivamente, de direito privado.(4)

            Ressalte-se que, pelos motivos expendidos, os chamados serviços de utilidade pública não podem ser qualificados como serviços públicos, por faltar-lhes, exatamente, o vínculo orgânico com a Administração Pública, pois esta apenas reconhece que eles trazem benefício à população, mormente se tiverem caráter assistenciais, culturais ou educacionais.

            Neste sentido é o escólio de Hely Lopes Meirelles : "A modalidade de serviços autorizados é adequada para todos aqueles que não exigem execução pela própria administração, nem pedem especialização na sua prestação ao público, como ocorre com os serviços de táxi, de despachantes (...)" E assim conclui: "os quais, embora não sendo uma atividade típica da administração pública, convém que o Poder Público conheça e credencie seus executores e sobre eles exerça o necessário controle no seu relacionamento com o público e com os órgãos administrativos a que se vinculam para o trabalho".(5)

            Portanto, conclui-se que a atividade típica da Administração Pública consiste na prestação de serviço público fruível pelos administrados, que é prestados diretamente ou por organismos ou empresas contratadas ou conveniadas com a Administração Pública, sob o controle permanente desta e sob regime jurídico próprio, seja total ou parcialmente, de Direito Administrativo.


7 - DAS ESPÉCIES DE DESCENTRALIZAÇÃO DA ATIVIDADE TÍPICA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

            O Estado pode desempenhar suas atividades típicas diretamente (através dos seus órgãos), de forma centralizada ou indiretamente, por meio de outorga aos seus órgãos de administração descentralizada ou através de delegação às empresas particulares, que por sua vez, colaboram com o Estado no desempenho de atividades típicas da Administração Pública, desde que de interesse coletivo.

            Portanto, há duas formas de descentralização das atividades típicas da Administração Pública: a outorga e a delegação.

            A outorga de atividades típicas da Administração Pública ocorre quando o Estado descentraliza suas atividades, instituindo, para tanto, autarquias ou entidades paraestatais. O § 2.º do artigo 327 do Código Penal, identifica as entidades paraestatais cujos servidores são considerados funcionários públicos para efeitos penais. São elas: empresa pública, sociedade de economia mista ou fundação instituída pelo poder público. A doutrina, por outro lado, também insere como entidades paraestatal os serviços sociais autônomos, tais como o SENAC, SENAI, SESC, SESI(6)

            A outra forma de descentralização de atividade típica da Administração Pública ocorre através do instituto jurídico da delegação, pela qual, o Estado, mediante contrato, ato administrativo ou convênio, atribui à pessoa jurídica de direito privado ou pessoa física, a incumbência de prestar alguma espécie de atividade típica do Poder Público.

            Conforme leciona Odete Medauar "A delegação de atividades administrativas pode ser concretizada, mediante o manejo dos seguintes institutos jurídicos: concessão, permissão, consórcios públicos, arrendamento e franquia".(7)

            A propósito, este é o escólio de Celso Ribeiro Bastos: "O Estado ao efetuar descentralização administrativa o faz, comumente, por duas formas: ou delega serviços públicos a particulares (particulares em colaboração com a Administração) ou outorga serviços a entidades públicas (autarquias) ou privadas, denominadas paraestatais (fundações, sociedades de economia mista e empresas públicas), que cria mediante lei."(8)

            Diante deste contexto, tem-se subsídios suficientes para responder às duas primeiras indagações inicialmente formuladas, quais sejam: 1 - Funcionário de empresa privada, concessionária do serviço público de transporte coletivo, desempenhando a atividade de cobrador de passagens, ao subtrair estes valores, cometerá qual crime? Peculato ou apropriação indébita? 2 - Funcionário de empresa privada permissionária do serviço público, contratada por sociedade de economia mista, para desempenhar a atividade de manutenção das linhas de transmissões elétricas, ao desviar objetos destinados ao labor, cometerá o delito de peculato, ou apropriação indébita?

            Salvo melhor juízo, não nos resta dúvida que, em ambos casos, há que se considerar o sujeito ativo da ação delituosa como funcionário público - e, por conseqüência, capitular os delitos como sendo peculato -, ante a ampliação da equiparação do conceito em análise, efetuada pela Lei n.º 9.983/2000.

            Ora, antes da alteração legislativa em comento, para exercerem as atividades objeto do questionamento, considerar-se-iam funcionários públicos somente se a entidade prestadora desta atividade fosse a própria administração pública direta ou entidade paraestatal. Assim, antes da novatio legis não se poderia considerar funcionário público os agentes supramencionados, pois o §1º do artigo 327 do Código Penal não tinha o condão de abarcar as hipóteses de funcionários de empresas privadas contratadas a título de permissão ou concessão, para a execução de atividade típica da Administração Pública.

            Destarte, afigura-nos, por certo, que a mens legis da alteração legal sob análise é, exatamente, alargar o conceito de funcionário público, justamente, para abarcar os funcionários de empresas privadas concessionárias ou permissionárias da atividade típica do Estado, considerando a progressiva descentralização das atividades típicas da Administração Pública que vem sendo implementada.

            Pensar em sentido contrário, desconsiderando o conceito de funcionário público para os casos em análise, implica tornar inócua a alteração legal, pois a situação criminal destes agentes permanecerá rigorosamente igual aos fatos cometidos antes da vigência da nova lei, já que os funcionários das entidades paraestatais já haviam sido contempladas antes mesmo da Lei n.º 9.983/2000, indicando ser imperiosa a extensão do conceito de funcionário público para as hipóteses ora aventadas, sob pena de esvaziamento do novo comando normativo.

            Ademais, os serviços executados pelas empresas privadas, objeto, dos exemplos aludidos, enquadram-se, perfeitamente, na classificação de atividade típica da Administração Pública, consoante os critérios já apresentados.


8 - DA EXCLUSÃO DO CONCEITO CRIMINAL DE FUNCIONÁRIO PÚBLICO DAS ATIVIDADES AUTORIZADAS PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

            Estão excluídos do conceito criminal de funcionário público os empregados ou titulares de serviços autorizados pelo Poder Público, pois escapam da abrangência da atividade típica da Administração Pública.

            Há certa corrente doutrinária(9) que defende a existência dos serviços impróprios do Estado, conceituando-os como sendo aqueles em que, embora, também atendam às necessidades coletivas, não são assumidos, nem executados pelo Estado, exclusivamente, seja direta ou indiretamente, mas apenas por eles autorizados, regulamentados e fiscalizados, pois esta espécie de serviços inclui-se na esfera de atividades privadas, exercidas por particulares, mas que em face do interesse coletivo, dependem de autorização do Poder Público.

            Nesta ordem de idéias, permite-se concluir que os denominados serviços públicos impróprios equivalem aos serviços públicos autorizados e, assim, nem estes, tampouco aqueles, são serviços públicos no sentido técnico. Portanto, os agentes que desempenham esta espécie de serviços não desenvolvem atividade típica da Administração Pública, seja por se tratar de atividade tipicamente de natureza privada, seja por lhe faltar o vínculo orgânico com o Poder Público, consistente, tanto na falta de dependência, quanto na ausência de permanente controle, entre a Administração Pública e o particular autorizado.

            São exemplos desta categoria as seguintes atividades: os serviços prestados por instituição financeira, de seguros, de previdência privada, de táxi, de despachantes, de pavimentação de ruas por conta de moradores, de guarda particular de estabelecimentos ou residências.

            Feitas estas considerações é possível responder à terceira indagação, qual seja: "Empregado de empresa privada, prestadora de atividade autorizada pelo Estado, ao subtrair valores em sua detenção, comete apropriação indébita ou peculato?"

            Ora, os empregados das empresas que prestam atividades autorizadas pela Administração não podem ser equiparados, criminalmente, a funcionário público, mesmo após a ampliação do seu conceito, operada pela Lei n.º 9.983/2000, pois, conforme demonstrado, estas atividades autorizadas escapam da abrangência do elemento normativo do tipo - atividade típica da Administração Pública, insculpido no §1º do artigo 327 do Código Penal, permitindo-nos concluir que o agente pratica o delito de apropriação indébita, pois este não exige a qualidade especial do sujeito ativo, não se enquadrando na classificação de crimes próprios, ao passo que o peculato o é, requerendo do sujeito ativo a qualidade de funcionário público.


9 - CONCLUSÃO

            As implicações cotidianas da ampliação do conceito criminal de funcionário público, efetuada pela Lei n.º 9.983/2000, constituirão o novo desafio à jurisprudência e à doutrina, especialmente pela superposição de categorias do Direito Administrativo sobre o Direito Penal.

            Contudo, embora possa parecer prematuro, arriscamos algumas considerações, mesmo que, posteriormente, o tempo demonstre que são impertinentes. O propósito, ressalte-se desde logo, é promover o debate acerca deste tormentoso tema.

            Ante os argumentos expendidos e considerando a ampliação operada no § 1º do art. 327 do Código Penal, é possível considerar funcionário público para os efeitos penais, as seguintes pessoas:

            1 - Além dos agentes políticos, vale dizer, as autoridades públicas, todos os demais funcionários da Administração Pública direta ocupantes de cargo, emprego ou função pública, mesmo que transitoriamente ou sem remuneração, em qualquer das esferas de Governo serão considerados funcionário público para os efeitos penais;

            2 – Da mesma forma, os funcionários dos órgãos da Administração Pública indireta, quais sejam, as Autarquias e as entidades paraestatais, estas últimas consistentes nas Fundações de Direito Público, as Sociedades de Economia Mista e as Empresas Públicas enquadram-se no conceito criminal de funcionário público;

            3 – Também, amoldam-se ao novo conceito criminal de funcionário público os empregados de empresas privadas, concessionárias ou permissionárias de serviço público, desde que prestem atividade típica da Administração pública, aferida segundo os critérios de:

            a) Fruição direta pelos administrados (substrato material); e

            b) Incidência de um regime jurídico, total ou parcialmente, de direito público, mesmo que realizado por particulares (substrato formal);

            4 - Por fim, conclui-se que os empregados de entidades de direito privado ou pessoas físicas prestadoras de atividades autorizadas pelo Poder Público estão excluídos do conceito criminal de funcionários públicos, mesmo após a sua ampliação, pois estas atividades não são serviços públicos, propriamente ditos, mas sim serviços de utilidade pública, não se identificando como atividade típica da Administração Pública, carecendo, assim, deste novo elemento normativo, que é requisito indispensável, exigido pela equiparação de funcionário público, insculpido no §1º do artigo 327 do Código Penal, através da ampliação efetuada pela Lei n.º 9.983/2000.


NOTAS

            1. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 20ª ed. atual. São Paulo: Malheiros Editores, 1995. p. 61.

            2. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 61/62.

            3. Op. cit. p. 479

            4. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. Revista dos Tribunais. 2ª ed. 1998. p. 331

            5. Op. cit. p. 353.

            6. Para Hely Lopes Meirelles, op. cit. p. 335 "Serviços sociais autônomos são todos aqueles que instituídos por lei , com personalidade de Direito Privado, para ministrar assistência ou ensino a certas categoriais sociais ou profissionais, sem fins lucrativos, sendo mantidos por dotações orçamentárias ou por contribuições parafiscais. São entes paraestatais, de cooperação com o Poder Público...)

            7. In Direito Administrativo Moderno. 2ª Edição. Revista dos Tribunais. 1998, p. 111.

            8. BASTOS, Celso Ribeiro e outro. Comentários à Constituição do Brasil (promulgada em 5 de outubro de 1988). v.3. t.3. Arts. 37 a 43. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 18.

            9. Neste sentido, é o entendimento de Hely Lopes Meirelles, in op. cit. p. 296


Sobre os autores


Rudson Marcos

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Ana Carolina Serpa

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Sobre o texto:
Texto inserido no Jus Navigandi nº49 (02.2001)
Elaborado em 10.2000.


Informações bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
MARCOS, Rudson; SERPA, Ana Carolina. A ampliação do conceito criminal de funcionário público (Lei 9983/00) . Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 49, fev. 2001. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=358>. Acesso em: 11 mar. 2008.


Jus Navigandi - Doutrina - A ampliação do conceito criminal de funcionário público (Lei 9983/00)

 

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