23/03/2008 às 09h14min Paulo Gustavo crônicas e poesias
Por Denilson Cardoso de Araújo, serventuário do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
O texto que segue alcançou o 2º lugar no Concurso de Casos e Textos sobre Administração Pública promovido em 2006 pela Fundação Escola do Serviço Público (FESP). Foi concebido como ilustração a um trabalho monográfico anterior, intitulado Agilização e Modernização da Justiça – o fator recursos humanos (disponível no Jus Navigandi). A leitura é longa, mas vale a pena reservar vinte minutos.
A reunião ‘mensal’ de setembro tanto atrasara que já era quase Natal. Por isso, tanta expectativa quando, com uma hora de atraso, Gualter Vênia, o Juiz Titular da Comarca de Morro Duralex, recebeu os funcionários na Sala de Audiências. Era tão espaçado o periódico encontro, que sempre desmoralizava agendas e calendários. Isso fazia dele um evento cercado de ansiedades. Ainda mais num dia de cara cinzenta e chuva interminável como aquele, com as goteiras do prédio iniciando sua cantiga.
O Escrivão já acordara descabelando as sobrancelhas e ocupara a manhã afiando a taquicardia no ensaio das desculpas, que, via de regra, eram sua única pauta. Entretanto, lembrando dos muitos problemas sempre pendentes, em meio a uma maioria apática, alguns funcionários terçavam as ansiedades em conversas no cafezinho. Podiam-se ouvir pequenos excertos pelo corredor: “Temos que tomar uma atitude!”; “Já que vai ter reunião, eles vão ver! Vou falar tudo, vou falar tudo!”; “Não, gente, nada de briga, vamos só argumentar”, diz uma suingada voz feminina que todos reconhecem como a de Tati Quebra-Galho. “Que nada, reunião é só esse desperdício de sempre”, concluiu um cético experiente. “Monólogos do nada”, disse outro, reflexivo, na enrustida alma de poeta.
Quando chega a hora do encontro, com respeitosos acenos protocolares, os funcionários adentram a Sala de Audiências. Alguns, a contragosto, oprimidos pela lembrança das mesas abarrotadas de equilibristas pilhas de processos pendentes, entram por último, buscando trincheiras por detrás dos mais dispostos a magros sorrisos. Era sempre intimidante a sisudez do espaço solene, dominado pela majestática cadeira, gorda e torneada rainha negra sob o enorme crucifixo. Ecoavam na sala os dramas, traumas e contendas que ali se decidiam. Diziam alguns que era mal assombrada por insatisfeitos querelantes derrotados. Da cadeira circunspecta, ajeitando o plástico cipreste de Natal sobre o canto da mesa, o Juiz fez um convencional gesto de partida ao seu Secretário.
Dr. Gualter era um juiz ainda jovem que, depois da formatura, esfalfara-se em oito anos de estudo insano e de correria por todo o país, numa turnê de concursos. Obtivera, finalmente, a tão almejada aprovação. Era agora um promissor magistrado. Uma autoridade. E era muito cioso disso. Aliava a competência técnica ao zelo pela liturgia do cargo. Era um dos raros juízes que faziam todas as audiências envergando a negra toga lustrosa. Fossem advogados, serventuários ou partes, sua postura sempre solene inibia aproximações.
Certa vez, um funcionário necessitou de um despacho para atender uma urgência, pelo próprio Dr. Vênia determinada. Aguardou pacientemente um intervalo das audiências. Entrou na sala vazia. Só o magistrado, entronizado em seu posto. “Com licença, Excelência”. Com um processo à frente, Dr. Gualter sequer levantou a cabeça. O funcionário aguardou, próximo e calado, meio sem saber o que fazer. Do silêncio constrangedor e interminável, o funcionário se preocupou com a hipótese de perder a oportunidade de ali resolver ‘seu’ problema e ter que esperar outro intervalo de audiência. Pigarreou discretamente. O magistrado, enfurecido, sem levantar os olhos, deu um murro na mesa. “Você não está vendo que eu estou em audiência?”, bradou. O serventuário, com os olhos arregalados, observou em volta as cadeiras vazias. Só eles dois na sala. Seria um encontro espírita?, pensou, imaginando presenças. Ficou ali, ignorado, sem saber o que fazer, até que, com o retorno do secretário, resolveu recolher-se, como um cachorro espancado, esgueirando-se, envergonhado, pelo corredor até ao Cartório, onde reproduziu num desabafo a cena inacreditável.
Noutra ocasião, o Oficial de Justiça vira-se confrontado com uma ordem atípica. Dr. Gualter mandou-lhe providenciar na empresa de transporte da cidade a condução do motorista de um coletivo, de que tinha anotados o número, placa, linha e horário. O Oficial titubeou, já que não havia processo, despacho, documento escrito, mandado, nada. Chegou a ponderar com o Juiz, que limitou-se a dizer: “Vai e conduz, que eu estou mandando. E já”. Constrangido, o Oficial oscilou entre a desobediência e o cumprimento da ordem. Mas simplesmente desobedecer era complicado. Confortou-se pensando que devia ser alguma urgência grave. Foi até a garagem da empresa e trouxe o surpreso motorista, que já encerrava seu expediente. Na sala de Audiências, o Oficial presenciou uma cena inesquecível. Dr. Gualter Vênia, togado, na sua cadeira, esmurrando a mesa, e dirigindo impropérios de toda ordem ao motorista acuado. Ocorrera que o juiz vinha pela estrada em seu carro quando tomou uma fechada de um ônibus. Enfurecido, controlou-se e evitou, sensato que se achava, a costumeira perseguição e a vendeta ridícula que devolve a fechada no próximo sinal. Fez todas as anotações necessárias e, assim que chegou ao Fórum, mandou que fosse feita a condução, cujo justiceiro desfecho, ali, agora, com o derretimento do motorista desnorteado, achando que iria preso, um atônito Oficial de Justiça presenciava. “Quero ver você, aqui, me dar uma fechada! Aqui eu sou a autoridade e você nada é! Aprenda a ter respeito pelos outros!”.
Era este o condutor da reunião que observava ao computador usado para as audiências, o célere secretário abrir uma “assentada” padrão, uma espécie de ‘Ata de Audiências Judiciais’.
Para Joaquim Agravo, era só uma audiência a mais. Aquele modelo era uma espécie elástica de burocrático bombril, com rebuscadas mil e uma utilidades tanto para audiências processuais, quanto para reuniões de trabalho, cafezinhos ou encontro de magistrados. Com o hábito, até suas sempre organizadas reuniões de família ganharam a distinção do modelar registro.
Quando, já com a reunião em andamento, o telefone toca, Joaquim realiza mais uma vez aquele seu sempre apreciado truque circense. Com a cabeça pendida, equilibrando o telefone espremido entre a orelha e o pescoço, continua digitando como um relâmpago, atendendo ao interlocutor, ao mesmo tempo em que consulta o Juiz e manifesta em plenitude os dez tiques que fazem das suas retinas piões sem controle, batendo nas paredes das pálpebras. Ficam assim, audíveis e não inteligíveis, ao mesmo tempo, tanto a ‘fala-solo’ do Juiz conduzindo a reunião, quanto a gorda dicção das explicações ao telefonema. Ninguém dá exata atenção a qualquer foco, ainda mais com aquele bizarro e incessante rodopio ocular que parecia um hipnótico ímã.
Fosse aquela reunião um navio e aquela cena de seu começo, bem lembraria boas vésperas de naufrágio, lembrança não de todo desprovida de conexão, com a chuva relampejando lá fora e engordando as goteiras do prédio de obra precária.
Diga-se que o malabarismo de Joaquim Agravo era um dos momentos especiais da vida no Fórum. Sabendo disso, gostava de exibi-los a balcões repletos. Sua perícia era sempre um distraidor de filas, mais barato que as TVs e sons-ambientes dos bancos, por exemplo. Tudo ainda mais especial quando em cruéis crises da silenciosa e fatal tendinite o malabarismo ganhava o dramático toque de ortopédicas luvas negras. Causava impressão, sem dúvida. Por pouco não lhe pediam autógrafos. No fundo, Agravo sonhava com o dia em que sua inscrição seria aceita no “Se vira nos 30” do Domingão do Faustão, onde, pensava, arrasaria. A fama! A fama seria sua porta de saída da sua judiciária jaula, arquitetava secretamente. Ou então, mais remotamente, podia, enfim, passar no concurso para o Ministério Público.
O problema é que sonhos desse tipo, individuais planos de ‘fugas de Alcatraz’, guiavam o dia-a-dia de quase 70% dos colegas. A expectativa da ingrata disputa, por si, já era desanimadora. Portanto, a vida funcional de Joaquim Agravo era um beco sem saída. Restava plantar jardins entre as grades da jaula. Por isso é que gostava dos seus malabares predicados. Outros eram bons em piadas, ou dados a viagens, ou hábeis no futebol das terças-feiras, ou experts em garranchos.
Havia, por exemplo o caso do Champollim. Aquele colega que misturava dotes de Champollion com os do Chapolim Colorado [1]. Divertido, meio atrapalhado e, ao mesmo tempo, com um talento único para garranchos indecifráveis. Ficou famoso quando estivera na Comarca um Juiz ainda não vitalício. A cada despacho seu, era como se um oráculo se manifestasse, só que em outra esfera, em dialeto indecifrável. Ficou conhecido como Juiz-esfinge. Decifra-me ou te devoro!, pareciam escrever as entrelinhas das incompreensíveis e garranchudas palavras postas no semi-alfabetizado despacho, pétreo como a Roseta.
Champollim sentia-se um verdadeiro lingüista, quando advogados ansiosos ou serventuários desconsolados se postavam à sua volta no balcão. Com as sobrancelhas franzidas, apreciava os jurídicos hieróglifos. Certificava-se de que eram efetivamente jurídicos, e não uma receita médica aviada em lugar errado. Depois de um exame atento que emendava em igualdade de condições deciframentos e adivinhações, pronunciava a tradução esperada. Tal ofício, exercido a título de múnus [2], valeu-lhe repentina fama e grande assédio. A transferência do Juiz, advertido pelos superiores – e, quem sabe, presenteado com um caderno de caligrafia – encerrara seu breve reinado. Confortava-se traduzindo aos colegas as certidões minuciosas e incompreensíveis do Dr. Amargoso. Mas eram raras. E, pior, eram fáceis. Desmotivado, Champollim nunca mais foi o mesmo. Seu trabalho voltara, repentinamente à rotina carimbadora e sem viço.
Por essas e outras, Agravo gostava de manter-se ativo e exímio em seus malabares. Enquanto não vinha o televisivo grito do Ipiranga, seguia exibindo-se, como um hobby, inclusive naquela reunião, até que um olhar fulminante do magistrado ofuscado pelos truques de Agravo abreviou-lhe as peripécias.
Encerrada a ligação telefônica, com a remessa do já desesperado interlocutor – que praticamente participou da reunião ouvindo e sendo ouvido - a outro ramal, puderam então os funcionários apreciar a costumeira ária do Juiz reprisando dramaticamente uma longa série de queixas contra o Cartório. O Escrivão, Dr. Amargoso, por uma daqueles reveladoras inconveniências do acaso, sentara-se no lugar do réu. Reproduzia, sem perceber, toda a mímica constrangida e a postura de cachorro molhado que o nefasto assento sugeria aos culpados.
Dr. Amargoso era muito querido por todos, mas pela frente, e sabia disso. Estava no importante cargo pelo mero decurso do tempo. Esse era o critério estranho de escolha das chefias, como se o Judiciário fosse uma adega francesa… como se, quanto mais empoeirado o velho escriturário, melhor seu vinho. Sonhara longo tempo com a distinção no carimbo como se fosse uma comenda merecida. Não fora preparado para gerenciamentos e supervisões. Fora um afiado processante, que tinha, à cabeceira da cama, o Código de Processo Civil. À noite, religiosamente, dividia suas reconfortantes leituras entre dez versículos da Bíblia e dez artigos do Código amado. Citava-o de cabeça. Fora uma máquina de trabalho, a verdadeira máquina judiciária, o legítimo demolidor de pilhas de processo. Mas, agora, com a coluna arruinada, ansioso com as contas feitas e refeitas a cada nova lei de aposentadoria que aguçava sua taquicardia, gerenciar atendimentos, organizar escalas de pessoal, impor disciplinas, lidar com insatisfações, tantas vezes confrontar o Juiz, essas obrigações normais do administrador… ah, meu Deus, pedem-me muito, pedem-me muito, dizia, esfalfado, é muito injusto. Para quem aguardava a praxe de um baronato tranqüilo, o impacto desses novos tempos, de confusa reformulação administrativa, eram realmente muito injustos.
Mas, na reunião, sempre com os ombros encolhidos, Amargoso gagueja as ensaiadas desculpas. Fala da falta de pessoal e do volume de trabalho. Socorre-se nas habituais queixas contra o Dr. Narciso, aquele advogado “reclamão” que não lhe dá sossego. Como este era odiado pelo Dr. Vênia, contra quem representara pelos maus-tratos aos advogados, instala-se o momento de descompressão do encontro, pois alguns riem, já que cada um lembra sua altercação pessoal com o destemperado e folclórico Dr. Narciso. A piada era uma não escrita convenção coletiva.
Os risos nervosos liberados são a senha para uma confusa descontração. Pequenos comentários e discursos atirados ao léu, paralelas conversas em dupla, cochilos escondidos em jurídicos cochichos, algaravia completa na qual o orgulhoso magistrado, com condescendente tolerância, enxerga saúde participativa.
Entretanto, lá está, substituta do Escrivão e rapper de chuveiro, a muito objetiva Tati Quebra-Galho, munida de um afiado bloco cheio de anotações. Quando ela levanta o braço, Dr. Vênia a adverte: “A reunião está indo bem, moça. Veja lá o que você vai dizer”. Ela então tenta argumentar, com delicadeza, sobre a necessidade de que aquelas reuniões fossem mais freqüentes, tivessem uma pauta previamente organizada para evitar dispersões. O juiz pigarreia, incomodado. A platéia prende a respiração. A rapper continua. Fala sobre alguns procedimentos que deviam ser tarefa do Gabinete e não do Cartório, especula sobre a necessidade de melhor planejamento administrativo, exemplifica com providências de maior racionalidade. A tensão retorna, aumentada. Amargoso fica observando, contrariado com a auxiliar, as reações negativas do Juiz, que cruza os braços, olha para o teto e balança as pernas por baixo da mesa, batendo o bico do sapato no estrado. Dr. Vênia vê em Tati a criadora de caso de sempre. A cética platéia passiva, por sua vez, embora respeitasse a ousadia de Tati no confronto, não entendia bem o idioma daquele discurso. Acostumados a obedecer, sem reajuste salarial há tempos, muitos sentiam-se tratados como meros capachos judiciários juramentados. Não encontravam ânimo sequer para uma palavra. Sem sinal de qualquer ressonância a qualquer dos seus comentários, a indagadora ruga na testa tristonha da Substituta é atropelada pelo prestimoso Secretário. Agravo não ia desperdiçar a deixa, ah, isso não, que ele era malabarista mas não era dois, e aproveita para lembrar justamente a necessidade de mais um funcionário na Sala de Audiências para dar conta de tanto processo. Amargoso arregala os olhos e engole em seco, apavorado com a hipótese de lhe arrancarem mais um pedaço do cobertor curto, naquela nítida briga de mendicância administrativa.
O murmurante e pesado silêncio que se faz, realçado pela música das goteiras, só é quebrado pela entrada de um advogado que irrompe em plena reunião, com uma petição para despachar. Era o Dr. Porta Aberta, aquele causídico de antológico e brontossáurico terno xadrez. Levava sempre em riste o Estatuto do Advogado. Marcara a dourado algumas das suas prerrogativas legais, principalmente a que lhe dava irrestrito acesso ao ambiente forense. Era conhecido por não respeitar contenção de placa, balcão ou porta. Nem mesmo o Ted Trivelato, o gigantesco auxiliar do atendimento, o continha. Certa vez entrara num banheiro (!) para despachar com uma Juíza arredia. Isso mesmo, num banheiro! A Juíza que, com a graça de Deus, apenas escovava os dentes, fez um escândalo com a boca espumando colgate. Do escândalo, corria uma representação contra o advogado invasor.
Após as piadinhas de praxe, com o tão rápido quanto inútil “junte-se” [3] do Juiz na petição, o advogado fuçador se retira da reunião. No alívio geral, Tati pede a palavra. É ignorada. Insiste. O Juiz consulta o relógio e isso meio que encerra os trabalhos. À burocrática indagação se alguém tem algo a dizer, os funcionários se entreolham sob o sorriso intimidante do magistrado. Tati olha em volta, com uma pequena lágrima pendurada no canto do olho. Lembra dos armários abarrotados, dos arquivos confusos, dos funcionários com tendinite, do leiaute inadequado, da rusgas de balcão. E ninguém a ouve! E ninguém fala! E as conversas do cafezinho? E todas aquelas queixas? E todas as sugestões indispensáveis ao momento? Nada. O habitual silêncio constrangido prevalece, e não é minorado, como de costume, sequer pela habitual piadinha de epílogo inconseqüente do Fred Cado, ausente àquela hora.
Naquela reunião nada se resolveu, nenhum passo se andou, nem sequer se fez boa catarse. Mas Dr. Vênia está satisfeito quando dita o conteúdo de algumas novas ordens para a ata. Dá um tapa na mesa e reafirma a importância daqueles produtivos encontros que integram a Vara. Agradece a cooperação nos esforços modernizantes. Diz que a porta do gabinete está sempre aberta e que “somos uma família”. Instado pelo Juiz, o Escrivão ainda é obrigado a avisar, quase em murmúrio, que a festinha de Natal comemorará também os aniversários acumulados pelo atraso, no próprio Cartório. A maioria torce discretamente o nariz, já imaginando a necessidade de novas desculpas para as ausências, ô exercício difícil de criatividade sempre renovada esse das desculpas! Joaquim Agravo encerra a assentada e os funcionários saem, quase uma hora após haverem entrado, como alunos de internato libertados, contando piadas nervosas pelo corredor cheio de partes [4] carentes, irritadas e cansadas, que aguardam as audiências atrasadas.
No corredor, vaga, com seu par de muletas, um deficiente de avançada idade, a quem falta um dos pés. Está ali, sem saber bem a quem se dirigir com um mandado de intimação nas mãos. Ouvira educadas explicações da moça da xerox, do policial militar, do faxineiro, e nada. Não sabia, ainda, o que fazer. Quebra-Galho, a última da fila dos funcionários, nota a situação e examina o mandado, sob o olhar ansioso do portador. No meio da parafernália de texto ingrato, identifica a minúscula data da audiência, marcada para o dia 15, só que dali a seis meses! Meio frustrada, passa a informação ao senhor, que se envergonha de não ter lido bem a data que, na verdade, sequer localizara no papel. Pergunta se pode telefonar pra confirmar a audiência, já que, na recente peregrinação, lhe disseram que são constantes os adiamentos. Dr. Amargoso, que vai passando, ainda inconformado com a intervenção de Tati, que, ele paranoicamente suspeitava, queria o seu lugar, com súbita autoridade, intervém, informando que não é possível dar-se informação por telefone. Tati não o contraria, mas espera Amargoso se afastar e entrega um papelzinho com o nº do telefone, e seu nome, para que aquele senhor pudesse telefonar. E então retorna ao Cartório, raspando nas paredes do corredor as toneladas de frustração que lhe esmagavam os ombros.
No cafezinho, na verdade um improvisado vão entre armários, funcionários apontam as mesas despejando babéis de processos e resmungam contra a inutilidade “desse negócio de reunião”. Lembram da inútil iniciativa de Tati, dividindo-se o grupo entre os poucos que aprovam (“Pelo menos ela tentou…”) e a maioria que diz: “Sabia que não ia dar em nada… quer aparecer? Pendura uma melancia…”, frase interrompida em respeito à silenciosa entrada da abatida Substituta.
É aí que alguém lembra do aniversário do Biu, o simpático menor estagiário que presta serviços no balcão. Logo, da improvisada cozinha, um ‘parabéns pra você’ entusiasmadamente catártico derrama-se pelo túnel de um corredor de gente faminta e espantada.
O telefone toca sem ser ouvido. Tati vai e atende a ligação onde o marido reclama do filho e, sacudindo a cabeça com desânimo, observa o Escrivão dizer que vai dar um pulinho no shopping pra refrescar a cabeça.
Tati Quebra-Galho era uma mulata de meia-idade, normalmente jovial e dada a cantorias. Mas a custo se equilibrava entre os cuidados com a família de filho adolescente e marido desempregado e as obrigações da ingrata função - agora sempre maiores, já que, a cada nova mexida nas leis da aposentadoria, o Escrivão renunciava a um maior número de tarefas, como se quisesse ir se compensando das más notícias previdenciárias sob a forma da antecipação de gotas de aposentadoria, com as quais arcava a Substituta. As dificuldades de manter a casa, mais os aborrecimentos de quem se esforçava para que aquele castelo de cartas judiciário não desabasse de vez, mais as contendas com o filho adolescente e o marido com a auto-estima a zero, obrigaram-na a trancar a matrícula no Curso de Administração. Aquela altura, Tati não se sentia estimulada a maiores otimismos. A reunião do dia, banal, corriqueira e repetitiva para quase todos, fora para ela uma punhalada. Sua intervenção não saíra do nada ou do improviso. Tinha estudado os problemas do Cartório. Fizera uma lista, anotara tentativas de solução, imaginara prioridades, conversara antes com o Escrivão e com alguns funcionários. Tinham acertado tentar dar novo rumo à reunião sempre tão improdutiva e, por conseqüência, melhorar o gerenciamento do trabalho. Com a mediocridade do encontro, a sensação de enxugar gelo retornara, mais forte do que nunca. O juiz, tendo deixado claro sua impertinência, reprisara a mesma impressão que sempre arrasava boas intenções de Tati Quebra-Galho.
Lembrou-se de alguns episódios. Aquele do ofício, logo que foi trabalhar no Judiciário, era exemplar. Ao fim do expediente, já noitinha, lhe pedem a extração imediata de um ofício para desconto de pensão alimentícia. No cumprimento da tarefa, a novata Tati observa que houve erro entre o pedido e a sentença dada em audiência. Solicita orientação da Escrivã, que limita-se a mandar cumprir a determinação do Juiz. Pondera, diz que a sentença determinou valor superior ao que fora pedido, o que a lei não permite. A Escrivã, já impaciente com a insistência diz: “Eu é que não vou falar com o juiz, você se quiser que vá…”. Autorizada, Quebra-Galho foi até o magistrado, que, evidentemente surpreso com a ousadia, incomodado com a abordagem pouco comum, ainda mais de funcionária novata, se limita a dizer: “Faça o que está determinado. Quem quiser que recorra.”. Com a angústia da incompreensão do autoritarismo gratuito, às custas do erário, do tempo e do dinheiro alheios, Tati cumpriu a ordem, sob satisfeitos sorrisos da Escrivã, que a essa altura reunira outros colegas pra assistir o desfecho do caso [5].
Pouco depois, pediu remoção para uma Vara da Infância. Lá, de vez em quando espantava-se com casais brigando, mães desesperadas, crianças chorando e menores infratores chegando sob escolta. Tudo com uma certa característica de Pronto Socorro. A toda hora, escrevente nova na praça, alguém lhe dava uma ordem qualquer. O termo de guarda pra daqui a cinco minutos, o ofício de encaminhamento ‘prá-agora-que-a-parte-está-esperando’, o processo tal ‘que-o-Juiz-precisa-despachar’, informações no balcão sobre um processo que a ficha indicava estar sobre sua mesa. Mil ordens, conflitantes, de mil ‘autoridades’ diferentes. Comissários, voluntários, psicólogos, advogados, etc. Sem saber bem qual ordem cumprir primeiro, ao fim do expediente, rastejando de volta à mesa onde a esperava o prejudicado trabalho regular, implorou da escrivã um organograma pra que pudesse mapear minimamente o que estava acontecendo, e a quem realmente devia se reportar. Recebeu uma sonora gargalhada como resposta. “Ah minha filha, o organograma sou eu mesma! Eu, he-he! Qualquer coisa, fale comigo! He-he-he… onde é que já se viu…. organograma…”.
Depois, houve aquele período em que chefiava o Cartório, cobrindo uma licença do Titular. Sempre com espírito cooperativo, certa vez elaborara uma proposta de melhorias gerenciais. Encaminhou-a ao Setor de Informática, eis que demandava alteração técnica no Sistema. Como também envolveria decisão administrativa, imaginou que era prudente remetê-la por cópia à Regional da Corregedoria. Do Setor de Informática nunca veio resposta. A Regional administrativa devolveu a sugestão, sequer apreciada, porque não contava com a assinatura do Juiz. Sabendo do caso, o Juiz, ofendidíssimo com a afronta hierárquica, não só endossou a reprimenda, como determinou que tal não se repetisse. Tati, embora não se considerasse especialmente dotada, entendeu o recado. Não se admitia a possibilidade de cabeças pensantes que não pudessem usar capelo.
Sentia-se cansada e desistente, ali, olhando para o vasinho de bravas violetas sobre a mesa. Mesmo assim, percebendo no corredor o crescente murmúrio contra o já insuportável atraso que a reunião impusera à abertura do expediente, arrastou-se até a porta e, ao som das trovoadas, e do reco-reco dos rodos tentando conter a água generosa das goteiras do saguão, abriu o Cartório.
Os advogados, ansiosos por não verem há tempos a cor de honorários, as partes enlouquecidas pela demora, as secretárias atarefadas, aos poucos foram entrando na Serventia. Trivelato os aguardava, com um sorriso cheirando a recheio de ameixa do bolo do Biu. Ao menos, um sorriso, alguns pensaram. Mas de ameixa?! Uma secretária pensou em protestar. Mas logo o peso do cartaz que alertava sobre a pena de prisão pelo desacato a funcionário público, bem à entrada, como um campo de força, a fez recuar [6].
Nisso, ouvem-se gritos no corredor e chega então o Dr. Narciso, alarmado, muito alarmado, vermelho, pedindo ajuda. Alguns funcionários correm ao balcão. O que acontecera? Dr. Narciso até era homem de criar caso, mas não de fazer escândalo, pensou Trivelato, para quem era bom ter sempre bem classificados os perfis dos encrenqueiros do atendimento. Dr. Narciso não era barraqueiro. Algo grave estava ocorrendo.“Tem uma mulher desmaiada no corredor! Alguém chame uma ambulância!”. Foi um corre-corre. Tati saiu correndo porta afora. Havia uma clareira bem debaixo da luz central do corredor semi-alagado. No meio, iluminada, uma mulher jovem, de cabelos negros, pálida, encharcada, com a barriga enorme da gravidez avançada. Estava ali, paralisando o dia forense, com a brusca poesia da sua urgência. Trivelato foi verificar se o guarda estava, mas ele tinha saído para uma ocorrência. Alguém trouxe água. Tati fez uma compressa na testa da mulher, enquanto sua cabeça era levantada. Um funcionário gritou: “Já liguei, a ambulância está vindo!”. Quando a mulher recobrou a consciência, acharam melhor levá-la pra dentro do Cartório. Dr. Narciso, Tati e Trivelato, com cuidado, carregaram a mulher meio atordoada. Havia um pequeno sofá na sala do Escrivão e ali eles a deitaram. A chuva lá fora rugia. A mulher, de repente, começou a gemer, desesperada.
Dr. Narciso, já em mangas de camisa, olhando a barriga baixa da mulher, avisava: “Acho melhor a ambulância andar rápido, acho que essa criança está querendo nascer!”. Tati, vendo o aguaceiro da bolsa rompida, confirmou: “Alguém traga uns panos! Acho que não vai dar tempo!”.
Enquanto tentava enxugá-la, Tati examinou os olhos desesperados da mulher. Maria era seu nome. Sem dinheiro, ela tinha caminhado de casa, por mais de uma hora, enfrentando lama, poças e a chuva torrencial. O marido, preso, viria do presídio em outra cidade, para um interrogatório. Depois de meses, ela teria a oportunidade de vê-lo, além de exibir a ele a visão reconfortante da imensa barriga com o aguardado rebento. No caminho, com fome e cansada, começara a sentir dores. Achou que era uma indisposição. Eram as contrações.
Ao chegar no Fórum, sem saber que, por falta de viatura para transporte do preso, a audiência fora adiada, mal teve tempo de cambalear pelo corredor procurando com quem se informar. O tombo só não fora pior porque, no corredor cheio, fora amparada pelo Dr. Narciso e pelo Cleilton, da limpeza.
Agora Maria estava ali, sendo acalmada por Tati. Nisso, o Dr. Gualter, avisado da emergência, fora até o Cartório para ver a razão do tumulto. Ao notar a situação surreal, primeiro hesitou ante à inutilidade da sua autoridade naquele contexto, ensaiou um mudo movimento de retirada, mas, sob um urro da mulher, teve um estranho lampejo, uma espécie de iluminação. Pegou a pilha de Diários Oficiais que estava sobre a mesa do Escrivão e antecipou-se aos panos que não chegavam, distribuindo os jornais sobre as poças de líquido amniótico. Do lado de Tati, perguntou o que podia fazer para ajudar. Fez-se um átimo de silêncio, interrompido pelos angustiantes gemidos da mulher. Dentre solidários e curiosos, havia uma pequena multidão na sala do Escrivão. Tati informou: “Dr. Vênia, não vai ser possível esperar mais. A criança está nascendo. Esvazia a sala e peça álcool e tesoura”. Obediente, o magistrado cumpriu os mandatos.
Tati só tinha a experiência do parto do próprio filho. Valendo-se do pânico como adrenalina para a ação conseqüente, desinfetou as mãos e a tesoura e cortou a roupa da mulher que urrava. Dr. Narciso, surpreendentemente calmo e lúcido como uma parteira nordestina, amparava os ombros e a cabeça da parturiente e a estimulava. Dr. Vênia, com a toga já toda manchada, rezava e, segurando as mãos da mulher, que quase lhe esmagavam os dedos, tinha a disciplina dos bem comandados. Tati mandou que preparasse as toalhas. Após colocar uma delas à frente da mulher, por cima dos editais e acórdãos multiplicados nas folhas de Diário Oficial ali espalhadas, por entre as lágrimas dos olhos turvos, pôde ver a criança que nascia. Lindo, mulato e miúdo. Um menino!
Dali a pouco, o vigoroso choro do recém-nascido já no colo do desajeitado Dr. Vênia ecoou pelas paredes do Fórum. Quase ao mesmo tempo, finalmente vencendo o labirinto de alagamentos, chegava a ambulância. Dr. Narciso parabenizava a mãe exausta e encharcada de chuva, suor e lágrima: “A senhora é uma guerreira. E este seu filho vai ser Ministro! Da Justiça!”. Entregando, relutante, a criança a um enfermeiro, Dr. Vênia de joelhos ali, com a lustrosa toga toda molhada, fez força para conter as lágrimas de repentina humanidade que lhe acorreram. Enquanto os paramédicos assumiam o controle da situação, Tati e Dr. Vênia se entreolharam. Quando viram a doçura do rostinho amassado, a seda dos cabelinhos escuros, as miniaturas de dedos, o abraço entre aqueles parteiros inesperados, foi conseqüente, sereno e natural. O choro os irmanou.
Dr. Narciso não ia perder aquela chance. Após entregar seu paletó para agasalhar a nova mãe, saiu anunciando à aglomeração ansiosa de funcionários, partes e advogados: “É menino! E Ministro!”. A assistência rompeu em aplausos emocionados. Houve abraços. Um frisson positivo percorreu os corredores. Uma criança nascera! Entre toscas guirlandas de Natal, Trivelato levantou Cleilton no colo, entre risadas. Dr. Porta Aberta, que, àquela altura, não conseguia mais conter seu ímpeto bandeirante, claro, invadiu a sala do Escrivão para averiguar. Presenciando a cena, imediatamente repassou a novidade, aos brados: “Tati e o juiz estão chorando até agora! E abraçados!”. Do espanto, choveram risos pela revelação inusitada. Trivelato não resistiu: “Ih, pintou um clima”. O Fred Cado, que chegara depois da reunião sentenciou, gaiato: “Milagre natalino! Milagre natalino!”.
Com a remoção da jovem mãe e do recém-nascido para o hospital, em impressionante e festivo cortejo pelos corredores mais natalinos do que nunca, o Fórum tentou retomar sua rotina, que, em insuspeitada, geral e intensa harmonia, entrou noite adentro. No resto do expediente, um reflexivo Dr. Vênia não mais tirou a toga. Apesar da murmurada sugestão em contrário de Joaquim Agravo, fez questão de utilizá-la até a última audiência, bizarramente condecorada com todas as nobres e estranhas umidades da vida. Aquela improvisada sentença de vida de que participara fora sua melhor decisão.
No outro dia, bem cedo, Tati foi visitar mãe e a criança no hospital. Chegando lá, encontrou já o Dr. Narciso aos afagos com a criança. O velho advogado se recompôs entre pigarros de surpresa ao ver a serventuária. Quando irrompeu pela maternidade o Dr. Vênia, os três se entreolharam, cada um surpreendido pela presença do outro, e caíram na gargalhada. Para sua sorte ou azar, se abraçaram justamente na hora em que o fotógrafo mandado para cobrir o caso pelo jornal local, sem que eles percebessem, imortalizava a cena. “Judiciário na maternidade!”, foi a comentada manchete.
A festa de Natal acabou sendo uma calorosa confraternização, com presépio vivo, já que o recém-nascido esteve na festa. Houve arrecadação de gêneros, roupas e brinquedos para Maria e a criança. Quando o menino foi batizado, lá estavam a mãe orgulhosa, o pai aos prantos, já liberado das suas obrigações legais e os três padrinhos orgulhosos: Tati, Dr. Narciso e Dr. Guálter Vênia. A criança recebeu o nome do pai, acrescido de signos dados pela grata mãe, referindo tanto à época quanto à bondosa profecia do dia do nascimento: José Natalício Ministério de Souza foi o nome do rebento.
Fato é que aquele Fórum nunca mais foi o mesmo. E até quando Dr. Narciso reclamou do panetone sem frutas na festa, ninguém levou a mal. Amargoso descobriu um tempo de trabalho não contado e conseguiu a almejada aposentadoria. Dr. Vênia passou a freqüentar o futebol das terças. Sem toga. Era um perna de pau, mas entusiasmado. Joaquim Agravo conseguiu um teste. Não para o Domingão. Para o Cirque du Solèil. A reunião de janeiro aconteceu em janeiro. E, acreditem, a de fevereiro também! Oficialmente, por conta do Carnaval que encurtaria o mês. Na verdade, porque havia muito o que conversar.
Tati nunca mais pensou em desistir.
NOTAS [1] Champollion, Jean-François, lingüista e estudioso francês, foi o primeiro a decifrar os hieróglifos egípcios, a partir de inscrições na pedra Roseta. Chapolim é um super-herói atrapalhado de um seriado de TV.
[2] Munus - Qualquer serviço público prestado de forma honorária, como Juiz de Paz, por exemplo.
[3] “Junte-se” é o despacho rotineiro pelo qual o juiz manda que um documento seja acrescido aos autos do processo. Sua inutilidade aqui é mencionada por se tratar de expediente muito usado frente a advogados que, abusando da prerrogativa de acesso ao Juiz, levam-lhe coisas sem a urgência que conviria.
[4] ‘Parte’ é o nome que se dá à habitual clientela forense, integrantes de pólos da ação como ‘partes processuais’, autores ou réus.
[5] Decisão ultra petita é aquela que concede mais do que foi pedido pelo autor, o que a lei veda. Há exceções, sendo uma delas, exatamente em ações de alimentos. O que não resolve o problema de Tati. Mesmo que o Juiz tenha se valido da prerrogativa, ficou claro que a Escrivã mandou cumprir a ordem não porque conhecia a lei, mas porque o Juiz mandara. Este, por sua vez, teria perdido a preciosa oportunidade de valorizar a curiosidade e o zelo da funcionária com um mínimo de atenção e ensino.
[6] Código Penal - Art. 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa. Em ordem baixada no segundo semestre de 2006, o Corregedor Geral da Justiça, Dr. Luiz Zveiter, proibiu a afixação do cartaz.
POST SCRIPTUM
Este texto é uma alegoria com intenção de carinhoso alerta sobre os métodos de trabalho e gerenciamento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Embora todos os ingredientes do texto tenham se baseado em experiências realmente vividas, ouvidas, testemunhadas ou por outrem sabidas, qualquer semelhança com pessoas ou fatos é mera coincidência. Não existe um ‘Dr. Vênia’, um ‘Dr. Amargoso’ ou mesmo uma ‘Tati’. Os comportamentos administrativos exemplificados, sejam negativos ou positivos, folclóricos ou exemplares, de todos os personagens, são detectados ocasionalmente, nas ações da maioria das pessoas que trabalham nos Fóruns. Aqui não se critica pessoas, mas um sistema com muitos vícios e vicissitudes. O melhor empenho individual do servidor mais sincero é quase nulo, diante do peso de uma máquina administrativa ainda arcaica.
Para o observador atento, o texto deixa claro o imenso rol de lapsos de condução administrativa, a maioria fruto de uma estrutura e de uma circunstância. Juizite, doenças do trabalho, inúmeras falhas técnicas na condução da reunião, falta de iniciativa gerencial, cerceamento à criatividade, precariedade dos prédios, desrespeito pelo público, autoritarismo, incompreensão de papéis, ausência de planejamento, nulidade do senso de coletivo, posturas omissivas. É claro que talvez tudo isso não aconteça num mesmo lugar, no mesmo dia. Mas os episódios acontecem. E precisam, para que deixem de existir, de uma revolução de métodos, de formas de relacionamento, de estruturas e, mais que tudo, uma revolução de consciência. Embora louváveis, os esforços de modernização do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, apesar de seu vanguardismo, ainda não lograram obter massificação de uma nova consciência, até porque ainda autoritariamente disseminados.
O texto tenta deixar ainda mais claro o elevado quilate do material humano que vivencia a circunstância de quase caos administrativo descrito. Personagens que pareciam os vilões na emergência cresceram, do ponto de vista de valores. Por isso, certo é que há saídas. Ali, a emergência criou solidariedade, como de fato costuma ocorrer, até com freqüência, em enchentes, catástrofes etc. Mas, via de regra, trata-se de uma solidariedade temporária e circunstancial. Tão logo a emergência se encerra, as coisas tendem a retornar ao statu quo ante. É preciso contrariar essa lógica, mantendo viva e organizada a solidariedade.
Por isso é que o texto termina necessariamente esperançoso. O advogado ‘reclamão’, o Juiz ‘autoritário’ e a serventuária inquieta são a equipe mais improvável que se poderia conceber. Normalmente pertencem a tribos muitos distintas dentro de um Fórum. No entanto, juntos é que resolveram a urgência. Tornaram-se mais humanos e aprenderam a ver ‘o outro’ de outra perspectiva. Fora do estereótipo. E junto com aquela criança, certamente outros ‘nascimentos’ ocorreram.
Há muitas ‘Tatis’ por aí. São os muitos juízes, serventuários, advogados, sindicalistas, ou mesmo partes, que, sinceramente, se esforçam por melhorias. O importante é que as ‘Tatis’ não desistam. A emergência está dada. Há partos a realizar. Unamo-nos.