Do casamento do ofensor com a vítima como causa de extinção de
punibilidade nos crimes de estupro e atentando violento ao pudorSandra Maria Nascimento de Souza Pequeno
Juíza de Direito no Estado de Rondônia e
pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal
INTRODUÇÃO
Sabe-se que o casamento é instituto de natureza civil, o qual estabelece como deveres de ambos os cônjuges a fidelidade recíproca; vida em comum, no domicílio conjugal; mútua assistência e sustento, guarda e educação dos filhos, consoante art. 231, I a IV, do Código Civil.
Busca-se, neste trabalho, uma abordagem sobre o casamento como causa de extinção da punibilidade, nos crimes de atentado violento ao pudor e estupro, ambos considerados hediondos por meio da Lei n. 8.072/90, uma vez que esses delitos são cometidos mediante violência ou grave ameaça. No primeiro, o infrator obriga a vítima (homem ou mulher) à prática de atos libidinosos diverso da conjunção carnal. No segundo, o ato visado é a própria conjunção carnal. Ambos externam o instinto selvagem e animalesco do agente, que se utiliza da força ou da ameaça para satisfazer sua concupiscência.
Induvidosamente, nestas modalidades delitivas, a vítima sofre conseqüências gravosas, de ordem física, moral, psíquica, familiar, etc. e casar-se com seu algoz é uma hipótese esdrúxula e fora de propósito. Todavia, para o legislador de 1940, esta hipótese emerge como uma forma de reparação de dano.
Pergunto: É um desprestígio à vítima ou ao casamento? As disposições penais introduzidas pela Lei n. 8.072/90, por serem mais gravosas para o réu, atendem aos interesses da vítima ou da sociedade? Em sendo a ação penal privada e se a intenção é proteger os interesses da vítima, sendo facultado a esta renunciar ao direito de ação, por que não se conceder a esta uma participação mais efetiva no processo?
Entendo que, no tocante aos crimes sexuais, faz-se imprescindível uma reforma legislativa, visando ajustar a norma aos anseios e à realidade social, com a urgência que o tema exige e merece.
I MODELO CONTEMPORÂNEO DE JUSTIÇA CRIMINAL
Entre os anos de 1940, ano em que o Código Penal entrou em vigor, até os dias de hoje, muita coisa mudou em todos os segmentos da sociedade. É inegável a evolução nas áreas das ciências médicas e da engenharia, bem como a influência da informática e da globalização no contexto mundial.
Também não se pode negar a crescente e incontida onda de violência que abala o mundo. A criminalidade organizada, a ocorrência de "chacinas" nos bairros periféricos das grandes cidades e outras manifestações de violência urbana, os conflitos agrários, a participação de agentes públicos, sobretudo policiais, na prática de atos criminosos graves, são exemplos disso. A sociedade aguarda respostas do Estado, porém as medidas até então adotadas mostraram-se inadequadas, insuficientes e inexitosas.
As Leis n. 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) e 9.034/95 (Lei de Combate ao Crime Organizado) constituem um marco no modelo político-criminal brasileiro, uma vez que suas características principais são: endurecimento das penas, redução ou supressão de direitos e garantias fundamentais, tipificações novas e agravamento da execução penal. Tais Leis traduzem o afã do legislador em combater a violência e a criminalidade que, no Brasil, são expressas em números elevados e atestam a incompetência do legislador e do Estado.
Esse mecanismo legislativo, de editar leis severas, foi fartamente criticado pelos doutrinadores e a Lei n. 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais) surge como uma nova via reativa ao delito de pequena ou média gravidade, implementando um dos mais avançados programas de "despenalização" do mundo e, mais que isso, permite a pronta resposta estatal ao delito, a reparação dos danos à vítima, dificulta a prescrição (já que ela não flui durante a suspensão), possibilita a ressocialização do infrator e não gera reincidência além de outras vantagens auferidas pelos que labutam na esfera criminal.
As Leis n. 8.072/90 e 9.034/95 demonstraram que não foram o bastante e, na prática, não surtiram os efeitos desejados. Contudo, a Lei n. 9.099/95 é apontada pelos doutrinadores, dentre eles Luiz Flávio Gomes, como o "Modelo Consensual de Justiça Criminal", onde as fundamentais reivindicações da vitimologia são realçadas, notadamente por meio da "reparação dos danos". Sustenta referido autor, em sintonia com Thaís Vani Bemfica e Ana Sofia Schmidt de Oliveira, a "redescoberta" da vítima, pois, segundo eles, a contar do momento em que o Estado monopolizou a distribuição da justiça, a vítima foi neutralizada, desprezando-se os efeitos por ela sofridos em decorrência da ação delituosa.
Sobre a questão, diz Luiz Flávio Gomes: a vítima é encarada como mero objeto, dela se esperando que cumpra seu papel testemunhal, com todos os inconvenientes e riscos que isso acarreta. (RT 745/423).
Nos primórdios da vivência do direito, a vítima e sua família ocupavam uma posição privilegiada. A elas se facultava requerer a vingança ou a compensação. Com a evolução social e política, o Estado passou a ser o titular da persecutio criminis, migrando a vítima de uma posição central para uma posição periférica.
No modelo clássico de Justiça Criminal, a vítima transformou-se em mero sujeito passivo de uma infração da lei do Estado. A reparação dos danos sempre representou, em geral, o efeito civil do delito (reparação civil ex delicto), sem afetar em nada a pretensão punitiva estatal. Aliás, é visível a ausência de coercibilidade da reparação do dano à vítima, senão após os intrincados procedimentos postos à sua disposição, o que, na maioria das vezes, dada a complexidade e morosidade, frustra o ressarcimento e as expectativas da vítima. Também é de se registrar que, quase sempre, o infrator integra grupos de marginalizados, bem como família com renda abaixo da linha de pobreza, constituindo um outro fator a acenar desfavoravelmente à reparação.
Nessa "redescoberta" da vítima, desponta o art. 245 do Texto Constitucional, o qual estabelece: "A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito". Conforme se vê, para aplicabilidade deste dispositivo, há necessidade de uma lei, o que até então não se providenciou.
Aponta Luiz Flávio Gomes que, no novo modelo de Justiça Criminal, a vitimologia reclama:
que o novo modelo seja comunicativo e resolutivo. Que se permita o diálogo, sempre que possível, entre o autor do fato e a vítima; que a vítima seja comunicada de todo o andamento do feito, dos seus direitos, etc., de outro lado, que a decisão do juiz criminal, na medida do possível, resolva o conflito, isto é, que permita a reparação do dano, mesmo porque a prisão, que constitui o eixo do modelo clássico, não soluciona nada, não resolve o problema da vítima e tem um custo social muito alto, por tudo isso, deve ser reservada para casos extremos (ultima ratio) RT 745/425.
À reparação dos danos deve ser atribuída eficácia penal despenalizadora, obedecendo ao princípio de intervenção mínima ou de ultima ratio do Direito Penal. É bem verdade que não pode ser aplicado a todo e qualquer caso, de forma indiscriminada. Todavia, quando os interesses envolvidos não autorizarem a descriminalização, mas havendo entre a pretensão punitiva estatal e a pretensão de indenização por parte da vítima uma perfeita comunhão, por que não se satisfazer ao interesse de ambos?
Há quem diga que, na medida em que se concebe a renúncia de pena ante a reparação dos danos, o Direito Penal perderia sua razão de ser, sua coerência e sua eficácia. Tal objeção merece ser refutada e os melhores argumentos são destacados por Quintero Olivares, citado por Luiz Flávio Gomes, os quais passo a elencar:
a) a afirmação de que o Direito Penal não existe sem pena é um exagero, revelador de grande apego ao retribucionismo mais radical, visto que ele pode perfeitamente cumprir seu papel coativo de ultima ratio, dando espaço para outras sanções admonitórias; b) qualquer renúncia de pena, sobretudo a de prisão, frente à reparação dos danos, está em consonância com o princípio de intervenção mínima (e subsidiária) do Direito Penal; c) mesmo quando não se aplica uma pena o Direito Penal não perde seu caráter controlador; d) eventual renúncia de pena deve ficar a critério do juiz, não do infrator, embora não seja infreqüente nos atuais ordenamentos jurídicos deixar nas mãos do infrator a dimensão de sua responsabilidade penal (é o que se passa, por exemplo, com o arrependimento posterior, arrependimento eficaz, desistência voluntária, delação premiada etc.); e) na prática, em muitos casos de acusação particular, o acusador deixa de atuar no mesmo instante em que recebe a reparação dos danos e isso tem levado ao arquivamento do caso, embora de forma aleatória e com sério risco de desigualdade. RT 745/426
Há 10 anos na magistratura, constatei que, em regra, a expectativa das vítimas é a reparação dos danos e que a Justiça Criminal não está aparelhada para satisfazê-las. Estas, na maioria dos casos, sensíveis aos problemas do réu, manifestam o desejo de que este não seja punido, pois sabem que a prisão não tem o condão de fazer o crime desaparecer e nem restabelecer o status quo ante. Temem que o infrator, tão logo resolva sua pendência com a justiça, queira vingar-se por ter sido processado e punido. Também sabem que aquele ser humano possui familiares, os quais suportarão os efeitos da condenação sem que tenham praticado nenhum ilícito. A regra geral, nos crimes havidos com violência, é a de que as vítimas não queiram nenhum contato com o acusado, pois temem represálias, e o fato de terem estado em contato direto com ele, quando do ilícito, permite-lhes avaliar com sabedoria o grau de periculosidade que ele oferece, sendo este um outro fator de distanciamento no binômio réu-vítima.
II - A REPARAÇÃO DO DANO NO CÓDIGO PENAL
O Código Penal, no art. 91, I, estabelece que a condenação na esfera criminal torna certa a reparação do dano causado à vítima. E ainda, que a reparação do prejuízo à vítima, antes da propositura da ação penal, possibilita a redução da pena, bem como constitui atenuante da reprimenda, nos termos dos arts. 16 e 65, III, b, do aludido Código.
A reparação do dano é prevista como condição para concessão da Suspensão Condicional do Processo (art. 89 da Lei 9.099/95), Suspensão Condicional da Pena e Livramento Condicional (arts. 78, § 2º, e 83, IV, do Código Penal, respectivamente), desde que o condenado possua condições econômicas e financeiras de suportar a satisfação do prejuízo causado.
Incontestavelmente, o sistema penal não prevê uma prioridade na tentativa de reparação do dano pelo acusado. Desamparadas, as vítimas deixam de reivindicar seus direitos. Contudo, é de se afirmar que uma sociedade que não protege e não presta assistência às vítimas de seus crimes, não obtém níveis de cidadania dignos e condizentes com a realidade histórica de seu tempo.
III - CRIMES CONTRA OS COSTUMES - A NECESSIDADE DA ADEQUAÇÃO DA LEI À REALIDADE
A premissa do crime é o fato social, porque é este que sintetiza a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade, sem que a recíproca se mostre verdadeira. É o fato social que controla e catalisa a punibilidade, marca registrada do crime.
Assim é que o estudo do crime se mostra inseparável do estudo do direito e, pois, de toda uma estrutura política social e econômica, delimitada no tempo e no espaço. O crime, em si, como simples idéia, desligado do homem e da história, afastado das leis e dos costumes, torna-se uma impossibilidade lógica. É que ele implica, por definição, um juízo negativo de valor que só pode ser emitido e vivenciado pelo homem.
Passados sessenta anos desde que o Código Penal entrou em vigor, no tocante aos crimes contra os costumes, ainda se aplicam as mesmas regras que o originaram. Parece que o legislador ignorou a evolução dos tempos, as mudanças e as transformações sociais, deixando de conjugar os fatos com a lei.
Na atualidade, o tema sexo deixou de ser um tema proibido e preconceituoso, tornando-se objeto de livres discussões nas escolas, na mídia e no âmbito familiar.
Não se pode ignorar o conflito existente entre a realidade social e a lei, quando se trata dos crimes sexuais. Com o advento da Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), os crimes de estupro sem resultado morte (art. 213, caput, do CP), estupro qualificado pelo resultado lesão corporal grave ou morte (art. 213, caput, c.c. o art. 223, caput e seu parágrafo único), atentado violento ao pudor (art. 214, caput) e atentado violento ao pudor qualificado pelo resultado lesão corporal grave ou morte (art. 214, caput, c.c. o art. 223, caput e seu parágrafo único), inclusive suas combinações com o art. 224, "c" do Código Penal, foram elevados à categoria de hediondos, pois entendeu o legislador que estes crimes estão entre aqueles que causam repugnância social.
Ora, se no meio social o efeito é o da repugnância, maior ainda é a repulsa da vítima contra seu agressor, tornando-se inviável qualquer possibilidade de casamento entre este e aquela, ressalvados os casos de violência presumida, quando, por exemplo, a vítima é menor de 14 anos de idade e consente com a cópula, por ser o infrator seu namorado.
A autora Thaís Vani Bemfica, em sua obra "Crimes Hediondos e Assemelhados - Questões Polêmicas" (1998:24), faz referência a um artigo publicado em um jornal do Estado de Minas Gerais, na qual um Magistrado se pronuncia no sentido de que as penas indicadas para reduzir a criminalidade seriam a de castração, de morte ou prisão perpétua. Escreveu a citada autora:
Anote-se que, conforme noticia o jornal Estado de Minas, de 30 de agosto de 1995, um juiz de vara criminal de Belo Horizonte, julgando um autor por crime de estupro, proclamou a necessidade de adoção da pena de castração, bem como das penas de morte e de prisão perpétua, como forma de diminuir a criminalidade que a legislação ainda não conseguiu coibir.
Na sua manifestação asnática, afirma que a atual legislação não tem encontrado eficácia na diminuição da criminalidade e nem o sistema carcerário é capaz de reintegrar os condenados à sociedade, para concluir: Se isso significa retorno à Idade Média, não importa. Importa que a pena de castração trouxe resultados proveitosos em 1833 para as famílias.
O texto acima espelha a indignação e a repugnância de um Magistrado, pessoa de elevado nível cultural, diante de um fato concreto. Imagine a reação da vítima!
Segundo o dicionário de Aurélio Buarque de Holanda, a palavra hediondo significa depravado, vicioso, sórdido, imundo, repulsivo, repelente, horrendo, sinistro, asqueroso, nojento, medonho, pavoroso. Tem-se que o legislador quis contemplar, via Lei n. 8.072/90, os crimes que causam repulsa, medo, pavor e que são cometidos com o uso da violência.
Um dos efeitos está na majoração da pena que antes era de 3 (três) a 8 (oito) anos de reclusão para o crime de estupro e de 2 (dois) a 7 (sete) anos para o crime de atentado violento ao pudor. Com o advento da Lei n. 8.072/90, a pena para ambos os delitos passou a ser de 6 (seis) a 10 (dez) anos de reclusão; de 8 (oito) a 12 (doze) anos de reclusão se da violência resulta lesão corporal de natureza grave e de 12 (doze) a 25 (vinte e cinco) anos de reclusão se do fato resulta a morte, não se permitindo fiança, liberdade provisória, anistia, graça ou indulto, estabelecendo-se o cumprimento da pena em regime integralmente fechado, vedando-se a progressão de regime, restando somente o livramento condicional, após o cumprimento de 2/3 (dois terços) da pena.
Nota-se que houve um rigor por parte do legislador ao tratar desses delitos. Contudo, o art. 107, VII, do Código Penal prevê o casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial, como causa para extinção da punibilidade. Dentre esses delitos estão o estupro, o atentado violento ao pudor, posse sexual mediante fraude, atentado ao pudor mediante fraude, sedução, corrupção de menores e rapto, excluídos os de lenocínio e tráfico de mulheres e ultraje público ao pudor.
A hipótese em comento parece-me razoável nos crimes que se concretizam sem violência ou grave ameaça, como por exemplo: sedução, rapto consensual, posse sexual mediante fraude e atentado ao pudor mediante fraude. Mas, nos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, não me parece ser viável, mormente quando o legislador, via Lei n. 8.072/90, os elegeu como hediondos.
Em ambas as modalidades, a violência ou a ameaça é empregada para vencer a resistência da vítima. No estupro, a violência tem por objetivo constranger mulher à prática da conjunção carnal. No atentado violento ao pudor a finalidade é a prática de atos libidinosos diversos da conjunção carnal, podendo a vítima ser homem ou mulher.
IV - CONCEITO DE PUNIBILIDADE. CAUSAS DE EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. CLASSIFICAÇÃO.
Em nosso ordenamento jurídico, a punibilidade consiste na possibilidade de o Estado aplicar sanção ao infrator da Lei Penal. É conseqüência do crime, não requisito.
As causas de extinção da punibilidade, expressas de forma enumerativa no art. 107 do Código Penal, são fatos ou atos jurídicos que impedem o Estado de exercer seu direito de punir os infratores da Lei Penal. Via de regra, os efeitos da extinção da punibilidade correspondem ao momento em que elas ocorrem. Se, antes da sentença passada em julgado, extingue-se a própria pretensão punitiva; se, durante a ação, a deterá; se, posterior ao trânsito em julgado da sentença, só a pretensão executória será afetada, persistindo os demais efeitos, dentre eles a reincidência e o lançamento do nome do réu no rol dos culpados.
É de se salientar que esse é o entendimento dominante na doutrina, existindo uma corrente minoritária sustentando os efeitos amplos e irrestritos, mesmo que o casamento tenha ocorrido após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Todavia, a anistia e a abolição do crime, mesmo quando posteriores à condenação passada em julgado, retroagem e atingem a pretensão punitiva.
Analisando-se o art. 107 do Código Penal, conclui-se pela existência de treze causas de extinção da punibilidade, elencadas em nove incisos, a saber: I) a morte do agente; II) a anistia, graça ou indulto; III) a retroatividade de lei que não mais considera o fato como criminoso; IV) a prescrição, decadência ou perempção; V) a renúncia do direito de queixa ou pelo perdão aceito, nos crimes de ação privada; VI) a retratação do agente, nos casos em que a lei a admite; VII) o casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código; VIII) o casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da celebração; IX) o perdão judicial, nos casos previstos em lei.
Classificam-se elas em gerais ou comuns e especiais ou particulares. As primeiras aplicam-se a quaisquer infrações penais, e as outras somente a determinados crimes. São comunicáveis ou incomunicáveis, conforme se comuniquem ou não, aos co-autores e partícipes do delito. São perenes ou temporárias, conforme sejam duradouras ou aplicáveis por determinado período de tempo. O casamento da vítima com o ofensor é especial, comunicável e perene.
V - O CASAMENTO DO OFENSOR COM A VÍTIMA COMO CAUSA DE EXCLUSÃO DA PUNIBILIDADE
O casamento como causa de extinção da punibilidade, nos crimes contra os costumes, já era previsto no Código Penal do Império (1830) e no Código Penal de 1890, permanecendo no de 1940, ressalvando-se que os dois primeiros Códigos estabeleciam a obrigação de dotar, caso a vítima fosse mulher honesta, na hipótese de estupro (art. 222, parágrafo único, do Código de 1830; art. 276 do Código de 1890). Caso a vítima fosse prostituída, nos dizeres do Código de 1830, pública ou prostituta, conforme expressões utilizadas pelo legislador de 1890, a pena privativa de liberdade era reduzida e inexistia a obrigação de dotar.
Aloísio de Carvalho Filho, em Comentários ao Código Penal (1979:304), registra que "o casamento do criminoso com a mulher por ele agravada na sua honra é, sem dúvida, reparação moral a que nenhuma outra iguala. A condenação do agente, atendendo, embora, à exigência social da punição, não produz resultados tão cabais." E mais adiante: "Só o casamento satisfaz como reparação, recolocando a mulher na estima social".
Ensina Magalhães Noronha, na obra Direito Penal (1993:362), que "é o casamento a maior reparação que o agente pode conceder à ofendida, nos delitos contra os costumes. Dando-lhe o nome, ele a protege, pondo-a a salvo do menosprezo social, ou, pelo menos, da desconfiança, tributo invariável que lhe é cobrado, na desgraça que a aflige".
Paulo José da Costa Júnior, in Comentários ao Código Penal (1996:739), afirma que "o fundamento da causa extintiva está na reparação do dano e no interesse social em que se forme uma família, legitimando-se filho eventualmente existente. É uma hipótese de arrependimento eficaz, que se opera posteriormente à consumação do crime, ao que se atribui excepcionalmente eficácia dirimente".
Consoante transcrições acima, essa hipótese tem por objetivo a reintegração na honra e a boa fama, a que tem direito a mulher, pois, de acordo com o legislador, por meio do casamento a mulher resgatava sua reputação social. Assim é que o poder público abre mão do direito punitivo, porque à sociedade interessa menos, no caso, a punição, só pela punição, do que a restituição da vítima ao seu lugar na sociedade.
De acordo com o art. 107, VII, do Código Penal, o casamento põe termo ao processo e ao fato que lhe deu causa, com fins de possibilitar uma vida tranqüila aos cônjuges, liberando-se da pena o ofensor e satisfazendo-se, no seu direito à reparação, a ofendida.
À luz da legislação vigente, necessário se faz que o casamento seja realizado na conformidade da Lei Civil, sendo imprescindível a anuência da vítima ou de seu representante, porém, no caso de recusa deste, pode o juiz suprir o consentimento. Não poderia ser de outra forma, pois admitir-se a celebração de tal ato contra a vontade da ofendida para livrar de pena o infrator seria subversão, no Direito Penal, dos princípios reguladores do instituto, consagrados no Direito Civil.
O casamento religioso ou concubinato more uxorio, mesmo com o consentimento paterno, não produzem a causa extintiva. No magistério de Paulo José da Costa Júnior, essas hipóteses devem atenuar a pena (1996:739).
Por outro lado, se o casamento for nulo ou anulado, desaparece a causa extintiva da punibilidade, devendo a pena ser cumprida ou a ação intentada, se não tiver ocorrido a prescrição. Pois, se assim não fosse, estar-se-ia favorecendo a fraude do réu, que, casando-se, evitou a condenação; anulando o casamento, livrou-se das obrigações, atingindo a plena impunidade.
É possível que da violência resulte a lesão corporal de natureza grave ou mesmo a morte da vítima, nos moldes do art. 223 e seu parágrafo único do Código Penal. Em tais hipóteses, o matrimônio a se realizar, ou realizado, libera igualmente de pena.
E ainda, nos moldes do art. 107, VIII, do Código Penal, até o casamento da ofendida com terceiro extingue a punibilidade, salvo nos crimes de estupro, atentado violento ao pudor e rapto violento, porque cometidos com violência ou grave ameaça, e se ela não requerer o prosseguimento da ação penal no prazo de 60 dias contados da celebração. Conforme se vê, o casamento da vítima com terceiro só tem lugar em crimes em que não haja violência (física ou moral).
Por outro lado, o casamento da vítima com o ofensor, por ser causa objetiva e, portanto, comunicável, exclui o jus puniendi abrangendo os co-participantes, pouco importando se o crime foi cometido com violência ou grave ameaça. Segundo lições de Magalhães Noronha, na obra já citada (1993:364), o fim principal desta hipótese é a reparação que se quer proporcionar à vítima.
VI REFLEXÕES CONCLUSIVAS
No meu sentir, o casamento do ofensor com a vítima, como causa de extinção de punibilidade, nos crimes contra os costumes, constitui o retrato fiel de uma sociedade dominada pelo "machismo" que acreditava que a mulher, para resgatar sua reputação social, tinha que aceitar casar-se com seu ofensor. Parece mesmo que o único beneficiado é o infrator, que, além de violar a lei e os direitos da vítima, estará isento de punição desde que se case com ela, e este casamento representa a reparação do dano. Indago: será que não havia um outro meio de se reparar o dano?
Aloísio de Carvalho Filho (1979:305) já alertava que a solução do casamento aparece como uma oportunidade para tristes transações em que pais sem escrúpulos e sedutores poderosos associados comercializavam com a honra da mulher ofendida, reduzindo-a a valor econômico, ensejando casamentos que se desfaziam na porta do Fórum.
Na atual conjuntura, constata-se que o papel reservado à mulher é o mesmo reservado ao homem, inclusive a Constituição Federal (art. 5º, I) reconheceu que homem e mulher são iguais em direitos e obrigações. Assim, o casamento não parece ser a melhor forma de a mulher resgatar sua reputação social. A uma porque os crimes de estupro e atentado violento ao pudor foram elevados à categoria de hediondos; a duas porque a aversão da vítima pelo infrator é tão profunda que impossibilita a convivência, requisito este indispensável à validade do casamento; e a três porque existem outras formas de se reparar um dano, dentre elas está a multa reparatória, instituída pela Lei n. 9.503/97 do Código de Trânsito Brasileiro e a multa indenizatória, abarcada na Lei 9.099/95. Ambas objetivam satisfazer a vítima ou seus sucessores e receberam a aclamação da doutrina por atenderem as tendências do novo modelo de Justiça Criminal.
É de se registrar que a prática da conjunção carnal e de atos libidinosos fazem parte da rotina de um casamento. Aliás, o inc. II do art. 231 do Código Civil, estabelece como dever de ambos os cônjuges a vida em comum, no domicílio conjugal. Custa-me crer que uma mulher, de livre e sã consciência, aceite casar-se com o homem que violou sua liberdade sexual, que se utilizou de violência para obrigá-la a ter com ele conjunção carnal, com o único propósito de satisfazer seus instintos animalescos. À primeira vista, parece que esta mulher está consentindo em ser violentada sexualmente todos os dias, até porque há uma corrente jurisprudencial e doutrinária que entende que, na constância do casamento, quando o marido obriga a mulher a ter com ele relação sexual não está praticando nenhum crime, mas tão-somente exigindo dela o cumprimento de um dever conjugal. Se assim for, essa vítima nunca mais vai poder alegar ter sido violentada.
Dentre os Juristas que sustentam a impossibilidade de o marido cometer o crime de estupro contra a esposa estão Nelson Hungria, Heleno Fragoso, Chrysólito de Gusmão, Maggiore, Manzini, Chaveau Et Helié, Puglia e Manfredini, todos citados por Valdir Sznick na obra "Comentários à Lei dos Crimes hediondos" (1993:59). Este último autor argumenta que: "Temos pois que, conquanto as relações sexuais integrem o fim primordial do casamento que é a procriação de filhos , também tem, como fim secundário ao lado da mútua ajuda, o remédio da concupiscência. A mulher não pode se negar".
E mais adiante, este mesmo autor (1993:60) destaca: "A negativa da mulher só quando for fundamentada ela está grávida e já no oitavo ou nono mês. Ou ainda no caso de doença grave. No mais, não. Verdade é que ao homem não é lícito usar da força, mas dentro do casamento a recusa imotivada pode levá-lo a usar de certos meios suasórios, com moderação (moderamen tutelae)".
No meu sentir, tais pensamentos não condizem com a realidade, e a hipótese agasalhada na legislação está longe de atingir sua finalidade, pois constitui um absurdo a esposa ficar excluída da proteção legal e sujeita ao excesso do poder marital. Por meio da Lei 9.099/95, em se tratando de lesões corporais, delito de menor potencial ofensivo, é facultado à esposa oferecer ou não representação contra o cônjuge. Ora, nos casos de estupro, delito de maior gravidade, como se negar à vítima a tutela jurisdicional?
Por outro lado, há de se considerar os valores atinentes à dignidade da mulher como pessoa humana e, apesar das obrigações maritais, não pode ela ser usada como um meio ou instrumento do marido para satisfação de sua concupiscência.
Durante todo o tempo que exerço a judicatura, sempre atuando em Vara Criminal, somente em um processo houve a extinção da punibilidade em razão do casamento do ofensor com a vítima. Nesse caso concreto, o agente havia sido condenado, em primeiro grau, pela prática de estupro tentado (art. 213, c.c. 14, II, do Código Penal) à pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de reclusão. Recorreu à segunda instância onde a sentença foi mantida. Inconformado, o réu apresentou recurso especial e, enquanto aguardava a apreciação deste último recurso, cuidou de casar-se com a vítima. Assim, obteve a extinção da punibilidade, mesmo constando dos autos uma declaração subscrita pela própria vítima, na qual esta afirmava que vivia com um outro homem. É de se registrar que o réu se tratava de um empresário bem sucedido na cidade de Cacoal/RO e que o casamento, nos termos da Lei Civil, nunca se concretizou, ficando somente no papel. Aliás, o réu vive com uma outra mulher com quem tem um filho, enquanto que a vítima também tem um companheiro e mora em outro Estado. A vítima sequer veio à solenidade, uma vez que outorgou uma procuração a um terceiro. Está evidente que, neste caso, o agente se casou para livrar-se da sanção penal, e a vítima, após ter sido estuprada fisicamente, aquiesceu em ser vítima de uma violência contra sua dignidade e moral. A lei serviu a fins escusos.
É de se salientar que um dos pressupostos para a validade do casamento é o livre consentimento para o ato. O consentimento do agente do crime que venha a se casar com a vítima jamais será revestido de espontaneidade. O temor da pena, que varia de 06 a 10 anos de reclusão a ser cumprida em regime integralmente fechado, independente de qualquer causa exterior, constitui um constrangimento capaz de eivar de nulidade o ato assim celebrado.
Concluo que, se a intenção é resguardar os interesses da vítima, que lhe seja facultado optar pelo casamento, pela aplicação da pena restritiva da liberdade ou pela multa, possibilitando-lhe ampla e efetiva atuação no processo, já que se trata de Ação Penal privada, em que a vítima é a titular da Ação Penal, podendo ela renunciar ao direito de ação ou perdoar o infrator. Essa possibilidade, decerto, motivaria a vítima a recorrer à Justiça e melhor atenderia aos seus interesses, além de que melhor se ajustaria às novas tendências do modelo contemporâneo de Justiça Criminal. Por outro lado, se a intenção é resguardar os interesses da sociedade e tendo em vista a prática de um crime hediondo, outra sanção não há senão a pena privativa de liberdade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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