RECURSO ESPECIAL Nº 802.435 - PE (2005⁄0202982-0)
Publicado em 27/02/2012 por stjnoticias
Conheça a história de Marcus Mariano da Silva. O mecânico, que tinha o mesmo nome de um criminoso, foi confundido e passou dezenove anos na cadeia, por engano.
O caso, considerado o mais grave atentado à violação humana já visto no Brasil, chegou ao Superior Tribunal de Justiça.
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RECURSO ESPECIAL Nº 802.435 - PE (2005⁄0202982-0)
EMENTA
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO DECORRENTE DE ATOS PRATICADOS PELO PODER JUDICIÁRIO. MANUTENÇÃO DE CIDADÃO EM CÁRCERE POR APROXIMADAMENTE TREZE ANOS (DE 27⁄09⁄1985 A 25⁄08⁄1998) À MINGUA DE CONDENAÇÃO EM PENA PRIVATIVA DA LIBERDADE OU PROCEDIMENTO CRIMINAL, QUE JUSTIFICASSE O DETIMENTO EM CADEIA DO SISTEMA PENITENCIÁRIO DO ESTADO. ATENTADO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
1. Ação de indenização ajuizada em face do Estado, objetivando o recebimento de indenização por danos materiais e morais decorrentes da ilegal manutenção do autor em cárcere por quase 13 (treze) anos ininterruptos, de 27⁄09⁄1985 a25⁄08⁄1998, em cadeia do Sistema Penitenciário Estadual, onde contraiu doença pulmonar grave (tuberculose), além de ter perdido a visão dos dois olhos durante uma rebelião.
2. A Constituição da República Federativa do Brasil, de índole pós-positivista e fundamento de todo o ordenamento jurídico expressa como vontade popular que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana como instrumento realizador de seu ideário de construção de uma sociedade justa e solidária.
3. Consectariamente, a vida humana passou a ser o centro de gravidade do ordenamento jurídico, por isso que a aplicação da lei, qualquer que seja o ramo da ciência onde se deva operar a concreção jurídica, deve perpassar por esse tecido normativo-constitucional, que suscita a reflexão axiológica do resultado judicial.
4. Direitos fundamentais emergentes desse comando maior erigido à categoria de princípio e de norma superior estão enunciados no art. 5.º da Carta Magna, e dentre outros, os que interessam o caso sub judice destacam-se:
XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
(...)
LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
(...)
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
(...)
LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
(...)
LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;
LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;
5. A plêiade dessas garantias revela inequívoca transgressão aos mais comezinhos deveres estatais, consistente em manter-se, sem o devido processo legal, um ser humano por quase 13 (treze) anos consecutivos preso, por força de inquérito policial inconcluso, sendo certo que, em razão do encarceramento ilegal, contraiu o autor doenças, como a tuberculose, e a cegueira.
6. Inequívoca a responsabilidade estatal, quer à luz da legislação infraconstitucional (art. 159 do Código Civil vigente à época da demanda) quer à luz do art. 37 da CF⁄1988, escorreita a imputação dos danos materiais e morais cumulados, cuja juridicidade é atestada por esta Eg. Corte (Súmula 37⁄STJ)
7. Nada obstante, o Eg. Superior Tribunal de Justiça invade a seara da fixação do dano moral para ajustá-lo à sua ratio essendi, qual a da exemplariedade e da solidariedade, considerando os consectários econômicos, as potencialidades da vítima, etc, para que a indenização não resulte em soma desproporcional.
8. In casu, foi conferida ao autor a indenização de R$ 156.000,00 (cento e cinqüenta e seis mil reais) de danos materiais e R$ 1.844.000,00 (um milhão, oitocentos e quarenta e quatro mil reais) de danos morais.
9. Fixada a gravidade do fato, a indenização imaterial revela-se justa, tanto mais que o processo revela o mais grave atentado à dignidade humana, revelado através da via judicial.
10. Deveras, a dignidade humana retrata-se, na visão Kantiana, na autodeterminação; na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivência sadia. É de se indagar, qual a aptidão de um cidadão para o exercício de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi uma "morte em vida", que se caracterizou pela supressão ilegítima de sua liberdade, de sua integridade moral e física e de sua inteireza humana?
11. Anote-se, ademais, retratar a lide um dos mais expressivos atentados aos direitos fundamentais da pessoa humana. Sob esse enfoque temos assentado que "a exigibillidade a qualquer tempo dos consectários às violações dos direitos humanos decorre do princípio de que o reconhecimento da dignidade humana é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz, razão por que a Declaração Universal inaugura seu regramento superior estabelecendo no art. 1º que 'todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos'. Deflui da Constituição federal que a dignidade da pessoa humana é premissa inarredável de qualquer sistema de direito que afirme a existência, no seu corpo de normas, dos denominados direitos fundamentais e os efetive em nome da promessa da inafastabilidade da jurisdição, marcando a relação umbilical entre os direitos humanos e o direito processual". (REsp 612.108⁄PR, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJ 03.11.2004)
12. Recurso Especial desprovido.
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Veja a Reportagem do G1 sobre a morte de Marcus Mariano da Silva em 2011
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No Recife, ex-mecânico preso por engano foi vítima de infarto, diz laudo
Causa da morte foi divulgada no final da manhã desta quarta-feira.
Procurador diz que Marcos Mariano obteve reconhecimento pela injustiça.
O Serviço de Verificação de Óbitos (SVO) divulgou laudo, no final da manhã desta quarta-feira (23), sobre a causa da morte do ex-mecânico que passou 19 anos preso por engano. Marcos Mariano da Silva, de 63 anos, faleceu de infarto do miocárdio na terça-feira (22), pouco depois de saber da conclusão do processo – um agravo de recurso especial – que movia contra o governo de Pernambuco. A Justiça concedeu, por unanimidade, ganho de causa ao ex-mecânico por danos morais e materiais.
Segundo o advogado Afonso Bragança, o enterro do corpo de Marcos Mariano está previsto para ser enterrado na tarde desta quarta (23), no cemitério de Santo Amaro, no Recife. Ainda de acordo com Bragança, a esposa do ex-mecânico ficou muito abalada com a morte do companheiro e está sob efeito de medicamentos. Para ele, quem tem direito a indenização é a esposa e os filhos, mas ainda não há previsão de quando a revisão dos valores sairá, nem de quanto será pago a família.
O procurador geral do Estado, Thiago Norões, informa que lamenta o ocorrido com Marcos Mariano e que tentou ajudar no que foi possível. Norões explicou que o ex-mecânico foi preso em 1976 e solto em 1982, devido a um erro no mandado de prisão verificado pelo juiz. Em 1985, Marcos Mariano foi preso novamente e solto no ano de 1998. “Assim que foi libertado, Marcos entrou com processo, obtendo ganho de causa na decisão do Superior Tribunal de Justiça, na segunda instância, em março de 2005. Em 2006, o governo criou uma pensão especial para que ele recebesse uma renda até que saísse o valor da indenização”, diz.
Thiago Norões ainda explicou que, em 2007, ele recebeu a primeira parcela, um valor menor que foi pago ao ex-mecânico - fato que o advogado da vítima nega. Dois anos depois, em 2009, Marcos Mariano recebeu R$ 3,7 milhões do Estado. “O valor atual que está em discussão, cerca de R$ 2 milhões, é relacionado aos cálculos dos encargos, essencialmente o valor dos juros, e a partir de quando ele tem direito”, conta. “Ele obteve o reconhecimento pela série de injustiças cometidas”, ressalta o procurador, que lembrou ainda da cegueira causada em Marcos por causa de estilhaços de bomba de gás durante uma rebelião na prisão.
Norões explica que não houve morosidade e que a demora para receber a indenização decorreu da sistemática que a Constituição impõe para que um estado pague os débitos judiciais, através de precatórios. Sobre recorrer da decisão, o procurador afirma que é um procedimento normal ir até a todas as instâncias possíveis para defender o Estado. No caso do ex-mecânico, foi defendido que o valor era muito elevado.
Segundo Afonso Bragança, após a decisão final e a execução, a dívida deve ser inscrita nos precatórios do Estado. “Se a indenização entrar nos precatórios até junho de 2012, a primeira das 15 parcelas anuais deve ser paga em 2013”, informou Bragança em entrevista à equipe do G1.
Entenda o caso
Marcos Mariano da Silva foi preso, em 1976, porque tinha o mesmo nome de um homem que cometeu um homicídio – o verdadeiro culpado só apareceu seis anos depois. Posto em liberdade, passou por um novo pesadelo três anos depois: foi parado por uma blitz, quando dirigia um caminhão, e detido pelo policial que o reconheceu. O juiz que analisou a causa o mandou, sem consultar o processo, de volta para a prisão por violação de liberdade condicional.
Nos 13 anos em que passou preso, além da tuberculose e cegueira, Marcos foi abandonado pela primeira mulher. A liberdade definitiva só veio durante um mutirão judiciário. O julgamento em primeiro grau demorou quase seis anos. O Tribunal de Justiça de Pernambuco determinou que o governo deveria pagar R$ 2 milhões. O governo recorreu da decisão, mas se propôs a pagar uma pensão vitalícia de R$ 1.200 à vítima.
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